A propaganda, ao fundo, repetia hipnoticamente a frase: "Doutor Adhemar, Adhemar doutor, doutor Adhemar, Adhemar doutor".
Uma voz se sobrepunha ao mantra e enumerava: via Anchieta, Hospital das Clínicas, via Anhanguera. Surgia a voz do candidato, Adhemar de Barros: "O Brasil precisa de um gerente".
Adhemar morreu há mais de 40 anos. Disputou duas eleições presidenciais e perdeu. Mas venceu: os dois candidatos à Presidência da República acham que o Brasil precisa de um gerente.
A campanha despolitizada virou sopa de letrinhas: um promete 117 Ufpecs, seja lá isso o que for, outro rebate com 214 Propacs, de significado também desconhecido. Um fala da Bolsa Família, outro diz que vai duplicá-la. Custos? Bobagem: promessa tem custo zero.
E daí? Daí, nada. Se o Brasil precisasse de um gerente, a eleição seria desnecessária: um "headhunter" traria uma pilha de ótimos currículos, entre os quais se escolheria o novo presidente.
Mas as coisas não funcionam assim: quando técnicos explicavam detalhadamente por que não era possível fundir um bloco de motor nos trópicos, o estadista Juscelino Kubitschek criou a indústria automobilística nacional.
Quando especialistas sustentavam a inviabilidade de Brasília, que, por algum motivo, não poderia dispor de telecomunicações nem teria condições de encher o lago artificial do Paranoá, Juscelino construiu Brasília com lago, telecomunicações e ruas lotadas de carros nacionais.
Mário Covas, por duas vezes, superou fortes adversários ao apresentar-se não como tocador de obras, mas como pessoa decente e correta. Podia errar, mas não por mudar de posição com fins eleitorais. Covas não prometia multiplicar o salário mínimo nem criar quatro empregos para cada brasileiro, bebês inclusive; o que propunha era uma linha de conduta.
Já estamos no segundo turno. Qual a posição de Dilma e Serra sobre a bomba atômica brasileira, defendida dentro do atual governo pelo ex-ministro Mangabeira Unger e pelo vice José Alencar?
Qual a posição de Serra e Dilma sobre relações com governos "de facto" na América Latina: áspero, como o que temos com Honduras, ou de baba-ovismo explícito, como o que temos com Cuba?
Qual seu modelo de Brasil: potência global, como os EUA, ou potência econômica não militar, como o Canadá, com a desvantagem de ser pouco ouvido e a vantagem de desfrutar da riqueza sem tantas ameaças externas?
Temas vitais para o país ficaram esquecidos na campanha. Optamos de vez pelo petróleo, deixando o álcool para trás, ou a preponderância do petróleo deve ocorrer apenas agora, que é preciso concentrar esforços no pré-sal?
O trem-bala é projeto isolado ou se integra no planejamento nacional de transportes? Devemos preferir os empregos gerados pela indústria automobilística e esquecer os problemas que traz, da poluição (e aumento de gastos com saúde pública) aos congestionamentos?
São assuntos complexos e que podem tirar votos, mas isso é política. Se a opção for pelo desaquecimento da indústria automobilística, seus empregados certamente votarão contra o candidato, enquanto os beneficiários talvez nem percebam que a sua vida pode melhorar. E, claro, quem já produz pode contribuir para a campanha, enquanto quem visa o futuro tem de entrar no fiado.
Em vez de discutir política e hegemonia moral, discutimos quantos anjos podem dançar na ponta de uma agulha.
Afinal, como diria o dr. Adhemar, o Brasil precisa de um gerente. Mas, lembremos, enquanto o Império Bizantino debatia a questão dos anjos na agulha, o país se dividia e morria por falta de futuro.
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CARLOS BRICKMANN, 66, jornalista e consultor de comunicação, é diretor da Brickmann & Associados. Foi editor e repórter especial da Folha e editor-chefe da "Folha da Tarde" (1984 a 1991).