Em 24 de janeiro último, véspera do aniversário da cidade de São Paulo, a Folha publicou um esclarecedor e oportuno artigo de Anita Novinsky sob o título "Padre Anchieta, cristão ou judeu?".
A Professora Anita destacou então um fato raramente mencionado, que é a origem judaica de José de Anchieta, que foi um dos fundadores de São Paulo. Lembrou que sua mãe era judia, "cristã nova", ou seja, convertida ao catolicismo, como a maioria dos judeus na época, para tentar escapar das garras da Inquisição. Sim, pois sua família, residente nas Ilhas Canárias (colônia espanhola), tinha um doloroso histórico de perseguições: o bisavô de Anchieta fora queimado pela Inquisição por "crime de judaísmo" e seu avô também fora perseguido pelo mesmo motivo.
Anita Novinsky revelou também que o próprio José de Anchieta só conseguiu ser aceito como noviço em Portugal pois neste país as leis da Inquisição eram burladas e altas somas podiam ser pagas a agentes inquisitoriais para adquirir "certificados de limpeza", ou seja, para esconder a origem judaica. Fazer um filho se tornar padre católico era uma forma de proteger uma família judaica das perseguições e, sob este aspecto, a família Anchieta teve muito sucesso, pois José conseguiu chegar à mais alta posição na Companhia de Jesus, como provincial da ordem no Brasil. Apesar desta compreensível motivação de sobrevivência, em nenhum momento a Professora Anita colocou em dúvida a fé católica, as boas intenções e os atos de José de Anchieta, ressaltando mesmo que "muitos cristãos novos se tornaram fiéis católicos e alguns mesmo religiosos cristãos".
Esclarecido este aspecto muito importante da biografia do Padre Anchieta, qual não foi o meu espanto ao deparar com um artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 8 de março último, assinado por Dom Odilo Scherer, cardeal-arcebispo de São Paulo, sob o título "Quem foi o padre José de Anchieta?"
O cardeal inicia seu artigo relembrando que o papa Francisco deverá proclamar "santo" o padre Anchieta em abril próximo. E, na sequência, traça uma detalhada biografia deste religioso. Começa mencionando que seu pai era opositor político no País Basco e "acabou encontrando refúgio nas Canárias para escapar das perseguições sofridas". Sobre sua mãe diz apenas que "era natural das ilhas". E a seguir escreve que Anchieta "foi enviado para estudar em Portugal quando tinha 14 ou 15 anos", lá teve contato com os jesuítas e entrou na Companhia de Jesus.
Dom Odilo, em seu artigo, julgou importante mencionar as perseguições sofridas pelo pai de Anchieta, que era basco e não judeu, mas não mencionou aquelas sofridas pela família de sua mãe, que era judia e teve até um avô queimado pelos inquisidores cristãos! E nenhuma palavra sua sobre a razão de José ter ido para o seminário em Portugal e não na Espanha, onde a Inquisição era bem mais severa.
O currículum vitae de José de Anchieta apresentado pelo atual cardeal de São Paulo, omitindo qualquer referência à sua origem judaica, publicado um mês após o artigo de Anita Novinsky, terá pretendido dar a José de Anchieta, agora candidato a santo, um "certificado de limpeza" atualizado, como aqueles comprados no Século XVI para eliminar a suspeita de judaísmo?... Esta omissão terá sido uma tentativa de "limpar" o currículo de Anchieta para apresentar ao papa Francisco um candidato "acima de qualquer suspeita", de modo a garantir que sua beatificação realmente se concretize como previsto?
Ora, qualquer observador atento da postura do novo papa já percebeu que ele é um grande amigo dos judeus e, com certeza, a menção às origens judaicas de Anchieta em nada prejudicaria sua candidatura a santo. Talvez até, pelo contrário, a revelação de como foi de fato a sua vida, por trás das aparências oficiais da Igreja, ajudasse o papa a ver José de Anchieta também como um ser humano, com todas as suas contradições, como aliás o próprio Francisco admite ter. Afinal, Edith Stein, que era judia e foi morta em Auschwitz, nem por isso deixou de ser canonizada como Santa Teresa Benedita da Cruz pelo Papa João Paulo II, bem menos liberal do que Francisco!
No momento em que o papa Francisco opta pela honestidade e pela transparência dentro da Igreja Católica, substituindo prelados e assessores no mundo inteiro, suspeitos de envolvimento ou complacência com escândalos sexuais e financeiros, com certeza "pega muito mal" qualquer postura de preconceito em relação a outras religiões, em especial a judaica, religião de Jesus e dos apóstolos, inclusive Paulo, o São Paulo...
Além disso, negar a Inquisição e todos seus crimes ou simplesmente omiti-los das biografias, seria, para a Igreja, um pecado semelhante ao de alemães que negam o holocausto!
ANTONIO SILVIO LEFÈVRE - É sociólogo, com graduação e mestrado pela Universidade de Paris (Sorbonne)