No filme Esqueceram de Mim, do longínquo ano de 1990, o protagonista mirim, diante do espelho, ao descobrir que está completamente sozinho, dá um grito de incredulidade. Uma graça, o loirinho. O segundo filme da série já não foi tão engraçado e, se houve um terceiro, eu não me interessei em ver. Certas coisas cansam...
Cansam tanto, que nos últimos tempos me veio à cabeça que o grito no espelho pode ter outras conotações. Pois vejamos: o homem é um ser social, gregário, com deveres perante si mesmo, a sociedade e, alguns, até perante uma autoridade sideral maior. E esse mesmo indivíduo, cidadão cumpridor, tem também alguns direitos, o que cria um certo equilíbrio entre as forças sociais: você dá, mas você também recebe (nada a ver, é claro, com o "é dando que se recebe" da política. Aí, é capaz de o espelho se quebrar, o que deve trazer - pelo menos para quem paga essa conta- uns sete anos de azar...).
Voltando ao tema: do jeito que as coisas vão, a incômoda sensação de "esqueceram de mim", de abandono, está tão presente no dia-a-dia que parece uma reprise de mau gosto.
Como nesta história: era uma vez um seguro- saúde (Golden Cross) e era uma vez um moço que resolveu comprar o seguro. Pagou, pagou, pagou, pagou ... e, de forma geral, o tal equilíbrio funcionou bem: pagou muito, recebeu muito. Custo alto com benefício à altura.
Aí o dono da empresa do seguro bom e caro se cansou da coisa toda e resolveu vender o brinquedo para outra (Unimed Rio), a qual logo se apressou em garantir aos segurados: fiquem tranquilos, tudo ficará com antes. Puxa, que bom, ainda mais porque estamos mais velhos, e é bom poder contar com os melhores hospitais etc, etc, etc. Nada vai mudar, maravilha.
Mas era tudo brincadeira! Igual, só o valor do pagamento. Tem os mesmos hospitais? Não! Tem os mesmos laboratórios? Não! E médicos? Também não! Fala com um, fala com outro, se descabela...
Fazer o que? Entre em um grupo que está lutando na justiça, etc, etc, etc.
Não vou meter Kafka no caso porque esse assunto não tem charme nenhum e acredito que o genial tcheco deva ser invocado apenas em situações de cunho existencial, e nunca para questões comezinhas como as que tratam dos direitos que deveríamos ter.
Mas vejam: o mesmo moço que pagou o seguro saúde aposentou-se há muito tempo. Sim, trabalhou desde os catorze, descontou o que tinha que descontar, pagou o que tinha que pagar, e trinta e tantos invernos depois, passou a receber uma aposentadoria. Anos mais tarde, o sujeito soube que poderia reivindicar uma revisão no valor pago pelo INSS; tinha direito a uma aposentadoria especial, privilégio concedido então aos jornalistas. O pedido foi aceito e ele então solicitou o pagamento retroativo da diferença entre os valores pagos e os devidos.
Olha que sujeito mais atrevido! Que ousadia... Pois foi só entrar com o pedido e o castigo não tardou: um belo dia foi informado de que sua aposentadoria havia sido suspensa. Totalmente.
Segurado - Por que?
INSS - Por causa de um papel a menos.
Segurado - Que papel?
INSS - O tal que faltava para comprovar os anos de serviço.
Segurado - Comprovar o que? Não faltava nenhum papel, se não como é que o fulano recebeu a aposentadoria durante anos?
Tem até um detalhe que seria engraçado se não fosse tragicômico. O instituto encafifou com um documento expedido por um dos empregadores, que descreve o cargo ocupado pelo requerente como "secretário de redação". Para os analistas deles, se o sujeito é secretário, não está trabalhando como jornalista, e, portanto, não tem direito à aposentadoria especial. Foram então apresentadas provas (incluindo um texto do Cony) de que houve um tempo em que, nas redações de jornais, o responsável pela edição era chamado de secretário de redação, função exercida, claro, por um jornalista. Mas nada foi resolvido e já se passaram seis anos desde a suspensão do benefício.
Assim é, assim foi e assim continua sendo. O resultado é que toda vez que o ex-aposentado lê alguma notícia sobre fraudes contra o INSS, tem uma vontade quase incontrolável de aplaudir. Que bando de gente competente!
Mas, como diria Tito Madi, "nem tudo está perdido em nossas vidas". A questão está agora nas mãos da Justiça, e existe a esperança de que ela venha desta forma, com letra maiúscula.
Enquanto isso, o sujeito que mantenha a calma. Nada de ficar nervoso, impaciente, ansioso. Esse tipo de coisa traz estresse, o estresse pode causar doenças ... e vai saber em qual hospital ele vai ter que se internar?
*Sílvia Zaclis - É jornalista, diretora-executiva da revista Iate