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"O poderoso presidente italiano". Por Celso Barata*

A cada patacoada de Berlusconi, tentando desmoralizar o perfil dos políticos, Giorgio Napolitano respondia com uma admoestação, uma lembrança da Constituição

21.01.2015  |  13 visualizações
Artigo publicado originalmente em O GLOBO, edição de 21 de janeiro de 2015

Todo mundo pensa que, só por ser a Itália parlamentarista, o presidente da República, que vai ser eleito agora dia 29, quase não tem poder algum, serve para pouca coisa. Mas ninguém melhor do que o presidente que saiu, Giorgio Napolitano, para desmontar essa ideia.

Durante quase nove anos, ele não se cansou de desmentir isso: a cada patacoada de Berlusconi, tentando desmoralizar o perfil dos políticos italianos, respondia com uma admoestação moral, uma fábula, uma lembrança da Constituição. Aproveitava as cerimônias públicas para destacar e ressaltar a qualidade sem par da democracia, pontificando valores, retificando posturas, restaurando o brio do poder.

No momento em que havia um perigoso vácuo de poder no país, ainda sem um primeiro-ministro forte, com o perigo de desvalorização dos títulos e da moeda, não hesitou em viajar de repente para o centro financeiro da Europa, a Alemanha, para discutir cara a cara com Merkel e mostrar que seu país tinha, sim, uma face e alguém que garantia seus compromissos. Quando viu que Berlusconi tinha ido longe demais, deu um jeito de nomear um executivo respeitado pelos europeus como Mario Monti, senador vitalício, para logo em seguida nomeá-lo premier. Audácia essa que até agora não desceu goela abaixo da direita, que o acusa, muito propriamente, de ter arquitetado um verdadeiro golpe.

Há mais de 30 anos, desde que o socialista Sandro Pertini (1978-85) assumiu, que a Itália não deixou de ter uma saraivada de grandes presidentes nos momentos críticos: escudado na imponência de seu passado de lutador partigiani durante a Segunda Guerra, Pertini se fazia onipresente. Simpático, tornou-se uma figura paternal, reaproximou os italianos, tirou a Presidência do esquecimento, mostrou que é possível ter, mais que tudo, a liderança moral. O democrata-cristão Oscar Luigi Scalfaro, eleito pouco depois, em 1992, empolgava, com sua decência, na hora em que a corrupção tinha jogado o país em seu nível mais baixo. Respeitado presidente do Banco Central, Carlo Azeglio Ciampi pairou acima das questiúnculas esquerda-direita. Foi uma escalada impressionante até Napolitano assumir: abaixo a politicagem chafurdava na lama, acima, no Quirinal, os presidentes desfaziam essa imagem, olimpicamente.

Quando o comunista Napolitano assumiu, muitos pensavam que seria temerária essa origem, que poderia mostrar um viés por demais politizado. Entretanto, conhecedor de cada detalhe da história recente e da Constituição, ele se portou como um verdadeiro magistrado, a ponto de, na hora da escolha do sucessor, após um mandato de sete anos, em 2013, há quase dois anos, terem voltado atrás e decidido que o melhor seria reelegê-lo, apesar dos 86 anos. Agora, cansado, à beira dos 89, renunciou, depois de um recorde de nove de mandato. Mas apenas para reassumir, no dia seguinte, suas antigas funções como senador vitalício, que já exercia antes de ser eleito.

Não vai ser fácil para a Itália achar sucessor para gente desse gabarito. Mas parece que a Itália acaba tendo esse dom, não?

*Celso Barata - É jornalista