Há poucos dias, em 21 de janeiro, comemoramos o Dia de Combate à Intolerância Religiosa. Os principais, mas não os únicos alvos deste tipo de intolerância no Brasil são as religiões de matriz africana, tais como a umbanda e o candomblé, e outras menos conhecidas, como a jurema, o jarê, o tambor-de-mina e o batuque. Infelizmente, como este é um problema com pouca visibilidade na mídia, ele parece pequeno, quase insignificante. Os inúmeros casos de intolerância que sofremos ainda são geralmente vistos como "isolados".
Vejamos o quão isolados eles são, relembrando alguns casos ocorridos em 2014.
Incêndios e bombas - Só no ano passado pelo menos dois terreiros foram destruídos por incêndios criminosos. O terreiro da Mãe Conceição de Lissá, em Duque de Caxias, foi incendiado no dia 26 de junho. Foi o oitavo ataque que sofreu em oito anos. Antes disso, o terreiro havia sido alvo de tiros, de depredação; e dois carros da mãe de santo já foram incendiados.
Outro caso de incêndio criminoso é o do terreiro de Pai Dedo, em Goiânia, ocorrido em 1º de abril. Antes disso, os moradores do bairro já haviam feito dois abaixo-assinados exigindo que o terreiro fosse fechado, numa clara violação à liberdade de culto garantida pela Constituição.
Em Porto Alegre, no dia 11 de outubro, uma bomba caseira foi jogada no pátio do Templo da Luz Divina, terreiro de umbanda de Oriani Azevedo da Rosa. No passado, o mesmo templo já havia sido apedrejado em duas ocasiões.
Chuta, que é macumba - Em Minas Gerais, um policial militar se deixou filmar por um colega de corporação "chutando macumba" na rua e bebendo a cachaça deixada com a oferenda. Além demonstrar desrespeito com a religião alheia ("chutar macumba" em nada difere de "chutar a santa"), ainda bebe em serviço. Pelo que me consta, ele foi afastado do cargo na época. Não tenho informações de qualquer evolução no caso e se houve alguma punição mais severa.
O vídeo pode ser visto no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=jYep6JxHVgw
"Bíblia, Sim; Constituição, não" - Um conflito iniciado em 2008 teve importante desdobramento no ano passado. Em 2008, um grupo de fiéis da Igreja Geração Jesus Cristo vandalizou o Centro Espírita Cruz de Oxalá, no Rio de Janeiro, quebrando cerca de 30 imagens religiosas. Um dos vândalos chegou a ser preso, após publicar um vídeo no Youtube defendendo o ato e lançando ofensas contra a umbanda e a Polícia Militar. O pastor da igreja, Tupirani, também foi preso, tido como mandante do crime, pelo delegado Henrique Pessoa.
Desde então, o pastor e fiéis da referida igreja têm causado problemas ao delegado e sua família, com ofensas e ameaças em redes sociais. Em 3 de setembro do ano passado, após uma audiência de conciliação, um grupo de 20 fiéis cercou o delegado na tentativa de linchá-lo. Acuado, ele foi obrigado a sacar uma arma e dar um tiro no chão, que acabou acertando um fiel no abdômen. O ferimento não foi grave e o delegado foi solto por se tratar de legítima defesa.
O lema desta igreja Geração Jesus Cristo é "Bíblia, Sim; Constituição, não", mostrando o seu desprezo às leis do país e a qualquer contrato social que possibilite a coexistência pacífica entre os cidadãos.
Traficantes de Jesus - Nas favelas do Rio de Janeiro, traficantes convertidos a igrejas evangélicas têm sistematicamente mandado fechar terreiros e expulsar pais e mães de santo. São o que eu chamo de "traficantes de Jesus". Por ordem deles, várias favelas da cidade já não têm mais terreiros de umbanda e candomblé e os poucos que restam correm perigo de represálias.
O fato é conhecido desde pelo menos 2008, mas só mereceu um pouco mais de atenção da mídia no ano passado, com algumas matérias em jornais de grande circulação.
E os casos que não são noticiados? - Até agora estive falando apenas dos casos que apareceram na mídia e cujos detalhes obtive em uma pesquisa rápida no Google. Mas quantos outros não aconteceram e não ficamos sabendo?
Por exemplo, ainda em 2014, o terreiro do meu amigo Diego Flores, em Mairiporã, sofreu um ato de perturbação de culto por parte do padre e dos fiéis de uma igreja católica que fica na mesma rua. Eles passaram a jogar água benta por cima do muro e a gritar para que os trabalhos fossem paralisados. O caso não foi denunciado às autoridades (deveria) e também não apareceu na mídia.
Em outra ocasião, neste mesmo terreiro, fui levar uma oferenda a uma encruzilhada nas proximidades e, tanto na ida e quanto na volta, caminhei sob os gritos e ofensas de moradores da rua, em um momento em que estava exercendo o meu direito constitucional à liberdade de culto.
Como umbandista há mais de dez anos, poderia escrever páginas e mais páginas contando casos semelhantes que presenciei ou que me foram relatados.
São casos isolados? - Apenas de memória, sem nada além de uma pesquisa rápida no Google para conferir alguns detalhes, citei neste artigo 9 casos de intolerância religiosa ocorridos em 2014. Alguns deles bastante graves (incêndios criminosos, ataque a bomba, tentativa de linchamento). E ainda estou tratando o caso das favelas do Rio de Janeiro como se fossem um só, quando na realidade se trata de um conjunto de violências.
Ainda dá para dizer que os casos de intolerância religiosa no Brasil são isolados? Será que não merecem tratamento mais detalhado da mídia em relação ao assunto?
A comunidade dos religiosos afro-brasileiros sente muita falta de apoio em relação a casos flagrantes de intolerância religiosa e violência. Infelizmente, como nossas religiões sempre foram marginalizadas, há uma tendência da sociedade em geral e do Estado em particular a não dar atenção a este assunto. Umbanda, candomblé e demais religiões irmãs não são vistas como religiões de fato, mas como piada ou coisa primitiva. Inúmeros casos de perturbação de culto e mesmo de vandalismo são registrados nas delegacias de polícia como "briga de vizinhos" ou algo parecido.
Não sei dizer que a intolerância religiosa no Brasil é crescente ou se está diminuindo. Mas sei que é uma realidade séria e grave e que não se trata de "casos isolados".
Espero que a sociedade acorde para este problema antes que aconteça um Charlie Hebdo tupiniquim.
Gabriel Mallet Meissner- É editor do site Entremundos - www.entremundos.com.br