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"O Estado brasileiro capitalista, mas até certo ponto". Por Rizzatto Nunes*

Se o Estado não presta o serviço adequadamente nem entrega um produto que funcione, pode o cidadão requerer o que pagou de volta? Sabe-se que no setor privado a pressão do consumidor por qualidade e eficiência fez as empresas melhorarem produtos e serviços. Mas, como fazer isso no setor público?

16.02.2015  |  61 visualizações
Artigo publicado originalmente na Tribuna do Direito, edição de 16 de fevereiro de 2015


Retorno ao tema do modelo de administração do Estado, apenas para levantar alguns pontos que envolvem a prestação de serviços públicos nesta nossa sociedade dominada pelos modernos modelos de intervenção capitalista e buscar uma reflexão sobre os resultados obtidos.

Como eu já disse uma vez, eu sou de um tempo em que a tecnologia ainda engatinhava e lembro muito bem que, quando assistia na tevê ao filme Jornada nas Estrelas ficava vidrado no aparelho tipo celular que os personagens da nave espacial U.S.S. Enterprise utilizavam para se comunicar. Era mesmo a antecipação pela ficção daquilo que se tornaria realidade. Star Trek , o nome original, é da década de sessenta (estreou em 1966 nos EUA e em meados de setenta no Brasil). Quando a Motorola lançou, em 1996, um aparelho celular que se abria tal como o do Capitão Kirk, batizou-o com o nome de Star Tac (Eu tive um e milhões de outros consumidores também, em todo o mundo).

A tecnologia avançou e em alguns casos até superou a ficção. Ainda não é possível fazer o teletransporte de pessoas (e, penso, nunca será), mas o mercado de consumo atual coloca à mão do consumidor muita coisa que ele sequer sonhava na segunda metade do século XX.

É de conhecimento geral que o modelo de produção capitalista do século passado, com ênfase no pós-Segunda Guerra Mundial, engendrou o maior desenvolvimento tecnológico de todos os tempos. Na segunda metade do século XX, pudemos assistir ao incrível incremento da tecnologia de ponta, do avanço das telecomunicações, da microinformática, do surgimento dos telefones celulares, da internet, enfim, a sociedade capitalista começava a alcançar a ficção científica. Aliás, prometia um conforto jamais imaginado (pena que ele não chegará para a maior parte da população mundial).

Esse modo de exploração do mercado (leia-se da sociedade e do planeta) foi aos poucos tomando conta de todos os setores existentes. E, com sua grande mão invisível e também visível, absorveu praticamente todo o corpo social, acabando por imiscuir-se em setores antes imunes. Nada escapou. Lembro, a título de exemplo, o caso dos esportes ditos amadores: a Olimpíada é, atualmente, um enorme negócio. E, naturalmente, do futebol nem preciso referir, porque faz muito tempo que a organização, local ou internacional, tem como meta o faturamento. Aliás, a Fifa hoje funciona como uma grande empresa franqueadora e licenciadora de produtos e serviços. As próprias Igrejas adotaram o modelo: hoje recebem dízimos mediante cheques pré-datados, cartões de crédito ou débito, têm programas de tevê, fazem marketing, vendem produtos pela internet, etc.

O Estado contemporâneo, de sua parte, não poderia ficar imune ao modelo implementado. Ele também passou a ser um agente de produção capitalista - direta e indiretamente - e acabou por adotar os modos de exploração e controle existentes no mercado. Isso, evidentemente, no mundo inteiro. No Brasil, o fenômeno está presente em todas as esferas da Administração Pública, municipal, estadual, federal, no âmbito das autarquias e empresas públicas, etc. Até aí, tudo bem. Não haveria, a princípio, nenhum problema em que a Administração Pública acompanhasse o desenvolvimento do mercado, melhorando sua prestação de serviços. O problema é que se constata que o Estado brasileiro, em todas as esferas, modernizou-se apenas em parte: na do marketing e na da cobrança.

E, com muita eficiência. Aponto um exemplo: um cidadão dirige seu veículo pelas ruas da Capital de São Paulo. É um dia útil e passa das 17:00 horas. Numa esquina, ele é flagrado por um radar, pois seu final de placas não pode trafegar naquele dia e horário por causa do rodízio. Algum tempo depois, ele recebe pelo correio em casa a multa e a foto de seu veículo com o número da placa. No mês seguinte, ele ingressa via internet na sua conta bancária. Acessa "pagamentos" e "licenciamento de veículos". Cadastra o seu colocando o número do Renavan. Clica, aparece o valor do IPVA, da multa em relação ao rodízio, do seguro obrigatório e de taxa do serviço de correio, pois ele receberá o documento do licenciamento em casa. Paga e tudo se resolve quase que num piscar de olhos, rapidamente, com o que há de mais eficiente e prático em matéria de serviços e sem sair de sua casa. Não é incrível? Não é muito eficiente? Realmente, funciona muito bem, sem qualquer entrave ou burocracia.

E para quem faz declaração do imposto de renda? Os programas fornecidos pela Receita Federal são maravilhosos. É só baixar, ir preenchendo, que ele vai indicando todos os caminhos que devem ser seguidos. É possível fazer rascunho, corrigir, reformar dados, projetar valores de devoluções e impostos a serem pagos, adotar o modelo simplificado ou o completo num único clique. Feita a declaração e entregue via web, o recibo de entrega é emitido na hora, em segundos e se há imposto a recolher, o Darf pode ser impresso na hora e quitado em seguida, via bankline. E, se existir divida anterior pendente, o contribuinte é informado no ato, podendo, também, emitir o Darf correspondente e pagar na hora. Enfim, tudo muito bem desenvolvido, com o que há de melhor em tecnologia e eficiência.

E há mais, muito mais. Essa modernidade tecnológica interligada "on line" permite que o cidadão pague uma conta de serviços, peça uma nota fiscal eletrônica e consiga um crédito para abater parte do valor de seu IPTU, ou que peça a nota fiscal paulista e além de receber créditos participe de sorteios mensais de prêmios em dinheiro. São adoções pela administração pública dos típicos casos de ofertas feitas pela iniciativa privada, visando obter comportamentos do consumidor e vendas de seus produtos e serviços em troca de bônus, descontos e outros benefícios diretos e indiretos, participação em concursos, etc. Aliás, não é de agora que a Administração Pública se utiliza das técnicas de "marketing" com publicidade massiva para anunciar suas obras (inclusive com publicidade enganosa...) Portanto, nem se discute que o Estado moderno copiou e adotou o modelo capitalista de atuação e funcionamento.

Como diria George Orwell, esse Estado tipo "grande irmão" é muito bom para vigiar, controlar e cobrar. Em contrapartida, pergunto: onde está a eficiência do modelo capitalista quando se trata de dar à população o que ela precisa? Onde está a tecnologia quando de trata de proteger as pessoas e seu patrimônio? E para prestar serviços públicos de saúde, transporte adequado, segurança etc.?

Parênteses para anotar uma curiosidade e uma coincidência: enquanto pensava neste artigo, ouvi, no dia 9 de fevereiro, numa estação de rádio, após a leitura de um boletim informando vários problemas no trafego paulistano, a reclamação de um jornalista contra a CET. Ele disse que acabara de entrar no Twitter daquela Companhia de Trânsito e vira que a última informação havia sido lá postada 3 horas antes e era a seguinte: "Pedestre, atravesse na faixa".
O jornalista ficou muito bravo com a ineficiência do serviço, que, aliás, funciona muito bem quando se trata de multar.

Bem. Se o modelo é capitalista, nós podemos fazer uma ilação relacionada ao direito do consumidor no que respeita aos serviços e produtos oferecidos pelo Estado (Minha abordagem é, digamos assim, mais filosófica que jurídica. Não levo em consideração o fato de que alguns serviços e produtos oferecidos pelo Estado diretamente ou por intermédio de concessão ou autorização, pagos mediante taxas e preços, são típicos de consumo e regulados pelo Código de Defesa do Consumidor, enquanto outros, custeados via impostos, não são).

Pensemos. O consumidor tem o dever de pagar o preço para adquirir um produto ou receber um serviço. Para a relação tornar-se válida, o produto deve atingir ao fim ao qual se destina funcionando adequadamente e o serviço idem, com eficiência e qualidade. Se o produto não funciona ou o serviço não é adequado, pode o consumidor reaver o preço pago. É esse o ponto. Se o Estado não presta o serviço adequadamente nem entrega um produto que funcione, pode o cidadão requerer o que pagou de volta? Sabe-se que no setor privado, a pressão do consumidor por qualidade e eficiência fez as empresas melhorarem seus produtos e serviços. Mas, como fazer isso no setor público? E pior: na esfera privada a competição favorece o consumidor. Como resolver a equação, quando se trata de monopólio?

A relação entre cidadãos e Estado nesses aspectos é, pois, muito injusta. De um lado, eficiência e modernidade para cobrar e, de outro, ineficiência e falta de qualidade na entrega dos produtos e dos serviços. Um caminho para que essa relação melhorasse talvez fosse a tomada de consciência em relação a esse imbróglio, visando escapar do assédio do marketing estatal (marketing que na iniciativa privada também é muito eficaz).

Às vezes, o problema está na nossa cara e nós não vemos. Infelizmente, a experiência mostra que as pessoas acabam se acostumando até com as coisas ruins. Meu amigo Outrem Ego contou que um dia, há muito tempo, quando sua filha era pequena, brincando com ela um jogo de adivinhação, sorteou uma carta e a pergunta era: "Aponte um lugar grande e repleto de buracos". Ele escreveu na sua ficha: "A lua".

A filha escreveu no dela:" A cidade de São Paulo".

Rizzatto Nunes - Escritor e advogado. É desembargador aposentado do TJ/SP, professor de Direito do Consumidor.