ARTIGO ESPECIAL PARA B&A
Ele não era militante partidário - talvez por isso tenha sido tão pouco lembrado. Foi o primeiro a resistir ao levante militar de 1964: sozinho, invadiu a TV Excelsior, Canal 9, de São Paulo, e capturou um vídeo com declarações de personalidades favoráveis à deposição do presidente João Goulart. Depois, ocupou o prédio da Cia. Telefônica Brasileira, no centro de São Paulo, numa tentativa de impedir as comunicações dos rebelados de São Paulo com os de outros Estados. Cercado por agentes do Serviço Secreto das Forças Armadas e do DOPS, Departamento e Ordem Política e Social, chefiados por um delegado de Polícia que o detestava pessoalmente, conseguiu resistir durante algumas horas, armado apenas com um revólver. Apontava a ponta de uma mangueira para os agentes e, com uma matraca, simulava o ruído de metralhadora. Escapou ao cerco, mas foi algum tempo depois capturado e preso no navio Raul Soares, utilizado pelo novo regime militar como presídio flutuante.
Foi uma história espetacular, a do repórter Nelson Gatto. Fez boa carreira na reportagem policial dos Diários Associados, em São Paulo; tornou-se amigo do deputado federal Abelardo Jurema. Quando Jurema foi para o Ministério da Justiça do presidente João Goulart, nomeou Gatto para a chefia do setor de Repressão ao Contrabando da Polícia Federal. Este era o cargo que ocupava no dia 31 de março de 1964.
Uma posição difícil, a sua: o governador de São Paulo, Adhemar de Barros, foi um dos líderes civis do movimento que depôs o presidente da República (e a Força Pública do Estado, na época com 60 mil homens, lhe era leal). O comandante do 2º Exército, general Amaury Kruel, oscilou entre o apoio a Jango Goulart, seu amigo pessoal, e a posição do Alto Comando das Forças Armadas, favorável à rebelião. Optou pela deposição do presidente.
Gatto não se importou: estava sozinho, sozinho agiu.
Para ele, o resultado foi trágico: no navio-presídio, o local onde dormia ficava em cima da caldeira. Seus rins foram permanentemente lesados. Quando foi transferido do navio para o Presídio Tiradentes, já não havia recuperação possível.
Os militares o libertaram, mas o proibiram de trabalhar. Tinha ainda bons contatos nosDiários Associados, que continuaram a pagar-lhe o salário, mas o custo de seu tratamento consumia tudo. Gatto se candidatou a deputado, sem êxito: sem dinheiro, disputando pela oposição enfraquecida pelas perseguições do Governo, sem vigor físico para a campanha, não tinha como ganhar.
Escreveu alguns livros interessantes, sempre sobre fatos que testemunhou: um sobre a invasão de Goa, enclave português na Ásia, por tropas indianas (O Dia em que Goa caiu); outro sobre a vida dos primeiros prisioneiros do regime militar brasileiro (Raul Soares, o navio-presídio). Mas poucos, no Brasil, conseguem viver de direitos autorais.
E, enfim, a doença o matou, em 2 de janeiro de 1985. E o destino se cumpriu: Gatto não era esquerdista, não tinha qualquer ligação com políticos e partidos que hoje estão no poder; não era ligado ao regime militar; e seu nome, o nome do primeiro a resistir, desapareceu da história do país. Foi citado apenas numa lista publicada pelo jornal do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo.
Concorde-se ou não com a posição de Nélson Gatto no dia 31 de março de 1964, é muito pouco para um grande repórter que mostrou sua grande coragem.
*João Bussab- É jornalista especializado em reportagem policial. Foi colega de Gatto no Diário da Noite. Trabalhou por muitos anos na Folha da Tarde, de São Paulo, e no SBT, onde se aposentou.