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"Duplipensar". Por Ricardo Mioto*

... É o "duplipensar" de George Orwell.... É mudar a análise do crime conforme a conveniência ideológica. É dizer, com óbvia razão, que estupradas não podem ser responsabilizadas pelo ocorrido, mas atribuir roubos à ostentação do paulistano, como faz Leonardo Sakamoto...

27.07.2015  |  20 visualizações
Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição de 25 de julho de 2015, colunista convidado


Há uns anos, um ministro do STF fez um peculiar apelo aos colegas: perder o senso da justiça até vai, mas não vamos perder o senso do ridículo.

Perder o senso do ridículo é acreditar (ou votar) em coisas contraditórias. É o "duplipensar" de George Orwell.

Em tempos de economia na vala, é achar que juros altos da dívida pública são uma desgraça que só favorece uma classe de rentistas, mas não ver problema se governo gasta mais do que arrecada, adiando a conta.

É ligar o mercado financeiro à voz da elite, mas defender generosos subsídios a empresários bilionários via BNDES.

É crer que cabe ao Estado decidir taxas de retorno da iniciativa privada, forçá-la a ser sócia da Petrobras (que parceira!) e depois lamentar que interessados em investir... ué, sumiram.

No campo social, é achar que a mulher que aborta é dona do seu corpo e destino, mas desdenhar a herege que faz cesárea (parto "não humanizado") ou desacelera a carreira porque é feliz cuidando dos filhos.

É mudar a análise do crime conforme a conveniência ideológica. É dizer, com óbvia razão, que estupradas não podem ser responsabilizadas pelo ocorrido, mas atribuir roubos à ostentação do paulistano, como faz Leonardo Sakamoto.

É atacar o machismo entre nós, mas, por relativismo cultural, calar ante atrocidades contra mulheres por islâmicos.

É, com justiça, valorizar o direito de realizar contratos livremente se gays querem casar, mas esquecê-lo ao perseguir o Uber, como Haddad, ou a Amazon, como propõe em lei uma senadora do PT.

... "Como pessoas fazem tais malabarismos mentais? Deve ser a necessidade de parecer legal. É humano. Queremos ser do bem, defender causas populares, ser aceitos no grupo"...


É papagaiar sua opção política pelos pobres, mas demonizar o agronegócio, cuja produtividade significa comida mais barata no mercado -quanto menos dinheiro tem uma família, maior o impacto da alimentação no orçamento.

É dizer que a criança deve ser alfabetizada quando se sentir pronta, sem "opressões", mas saber que isso só vale para os filhos dos outros -os nossos vão ao colégio Bandeirantes, estudar norma culta e tabuada.

Como pessoas fazem tais malabarismos mentais? Deve ser a necessidade de parecer legal. É humano. Queremos ser do bem, defender causas populares, ser aceitos no grupo.

Quem vai ser contra dar mais dinheiro para os velhinhos do INSS? E defender que perder empregos improdutivos no curto prazo é o preço de uma abertura modernizadora da economia? Quem verá as livrarias de bairro incapazes de competir e falará "bom, que quebrem"?

Para ficar na Folha, sei que pega melhor no Facebook compartilhar, digamos, o Gregorio Duvivier do que o Alexandre Schwartsman. Aliás, Alexandre quem? Tem canal de humor no YouTube? Não, é o cara que escreve sobre... superavit. Uau.

O único porém é que botar a carência a serviço da lógica não costuma dar muito certo.

(PS: Alex, ouvi que vão abrir as inscrições pro curso de ator do Wolf Maya. É a chance.)


Ricardo Mioto - É jornalista, editor adjunto do Caderno Cotidiano, da Folha de S. Paulo