Artigo publicado originalmente na coluna do autor na Folha de S. Paulo, edição do dia 14 de setembro de 2015
Vai, deita, Gigante. Foi um pesadelo, você bebeu e comeu demais e não estava acostumado. Dorme...
Não se engane, eles sabiam muito bem. Só fingiam, uns porque queriam manter o poder, outros, em troca de migalhas, mantinham o coro dos contentes. E teve também os que simplesmente se enganaram por não ter lido o "Discurso da Servidão Voluntária", para sorte dos autores.
Todos tinham aprendido desde a primeira aula: a história quando se repete vem como farsa. Até porque essa apostila ("O 18 Brumário") é curta. Sim, eles já sabiam, só estavam esperando o circo vir abaixo. Depois, sabiam, uns poucos pagariam a conta. Porque no fim da festa, sempre aumentam impostos.
Foi um sonho, a ideia de que o Brasil assumia seu papel na história; de que "o gigante adormecido" acordou para ocupar o papel de potência, sentar no Conselho, arrotar umas ordens para o Obama sobre paz mundial, palpites para a Angela Merkel sobre economia da Europa, e ensinar todo mundo como implantar o "bolsa família" para salvar o planeta da fome.
Enfim, quem conhecia a história sabia que o "Brasil potência" é uma lorota antiga, já do início da colonização, sempre usada para enganar o povo.
Foi pensando no Gigante - você - que todos aqueles portugueses toparam vir para este fim do mundo. Acreditando que era verdade, holandeses chegaram a invadir um pedaço. Basta ler o que diziam sobre a decisão de D. João 6° ao implantar a corte no Rio. Estava criando "a Idade do Ouro" do Brasil, em 1808...
Quando seu neto D. Pedro 2° foi aos EUA para o centenário da independência deles, foi recebido como o líder de potência, embora soubessem que sua nação era pobre de espírito, só escravos trabalhavam e o Gigante dormia. Por diplomacia, na festa foi dada ao imperador a oportunidade de ouvir a primeira chamada telefônica da história oficial. A farsa foi narrada por Sousândrade no "Inferno de Wall Street".
Mas você não leu, Gigante? Estava dormindo. Leram; e fingiram que não sabiam de nada.
E quando precisaram do Brasil para combater a Alemanha? Até o ditador fascista envergonhado, Getúlio, foi feito de estadista (até agora há aqui quem acredite). De novo, o mundo fingiu que você, Gigante, estava de pé.
A farsa se repetiu quando Médici, o tirano sanguinário, foi a Washington: "Para onde for o Brasil, vai a América Latina", disse o presidente deles, pouco antes de renunciar (aliás, Gigante, você ouviu algum americano dizer que a demissão do Nixon foi golpe?). E mais adiante, foi a vez do Collor ser recebido na Casa Branca com ares de respeito inebriante. E dessa vez quem caiu foi ele (escute, Gigante querido, alguém disse que a demissão do Collor foi golpe?). Todos sempre incensados como se fossem líderes de um Gigante - você! Só esqueceram de te acordar.
Estava escrito no Sousândrade: "Eu sou o Americano sem títulos, Que derriba imperadores; Sou o Guesa, e para amores tenho o meu sol". Em vez de combater tiranos, esta geração achou legal servir a um simulacro, como se fosse acordar e alimentar a todos com uma "Bolsa Gigante", de conforto, saúde, felicidade e satisfação, para o resto dos tempos.
Tudo sem esforço, sem ter que levantar, que sonho! Mas não passou de pesadelo, você bebeu e comeu demais.
Volta a dormir, Gigante, antes que chegue a conta.
Leão Serva - Ex-secretário de Redação da Folha, é jornalista, escritor e coautor de 'Como Viver em SP sem Carro'. Escreve às segundas, quinzenalmente, no Caderno Cotidiano. Ex- Jornal da Tarde, ex-Lance, ex-iG , chefiou a assessoria de comunicação de Gilberto Kassab (na prefeitura, desde a gestão José Serra), e foi diretor de redação do Diário de S. Paulo. Vários livros publicados na área de interesse de Cidades, Mobilidade Urbana. Fundador da Santa Clara Ideias.