Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo, Ilustrada, edição de 18 de novembro de 2015
Sinto um alívio meio idiota de viver no Brasil quando surgem notícias como esta do atentado terrorista em Paris. É como se, por aqui, não convivêssemos com índices de assassinato incomparavelmente maiores do que os de uma cidade europeia - para nada falar das mortes no trânsito ou de acidentes como o da barragem em Mariana.
Mas talvez a sensação de relativa segurança do meu dia a dia não seja tão idiota assim. Os assassinatos atingem mais os jovens negros e pardos da periferia. O desastre em Minas destruiu vidas numa área desassistida.
Não que eu frequente shows de rock, mas os ataques do Estado Islâmico em Paris visam mais claramente pessoas com o mesmo estilo de vida que o meu. Não se trata de proximidade física, mas de identificação pessoal com as vítimas.
Embora injusto, porque toda morte estúpida de um ser humano só pode ser lamentada, meu sentimento não deixa de ser natural. Qualquer solidariedade depende, acho, de uma projeção que nasce de nós mesmos, de nosso próprio egoísmo: "poderia ter acontecido comigo".
Entendo que haja eurocentrismo, racismo, mentalidade colonizada quando um atentado em Paris nos deixa mais chocados do que outro em Cabul. Mas não consigo me sentir culpado com isso.
Posso imaginar melhor, porque conheço a cidade, um atentado na capital francesa. Não imagino tão bem a vida em Cabul. Toda solidariedade é, entre outras coisas, um ato de imaginação.
O medo também. Por mais que os assassinatos da polícia brasileira sejam revoltantes, e que a negligência no caso da Samarco tenha sido criminosa, ainda assim um atentado terrorista tem caráter totalmente diferente.
Os extremistas islâmicos estão tomados de uma intencionalidade permanente e indiscriminada: podem atacar a qualquer momento, qualquer pessoa, sem qualquer pretexto, sem aviso nem visibilidade.
Nesse sentido, sem dúvida os fanáticos islâmicos se identificam com a fúria de seu próprio Deus, onipresente e arbitrário, onisciente e cego. A "irracionalidade" de seu comportamento - para além das considerações táticas que possa ter - espelha, na verdade, as ações de um poder absoluto, incompreensível e divino.
Sente-se, então, uma malignidade oculta, insone, indiscriminada, atrás de cada esquina, na cabine de cada avião, debaixo da mais inocente banca de frutas.
Até o miliciano, o torturador, o criminoso, o policial tem um rosto, um corpo, uma proximidade. O terrorista é menos "pessoal", nesse sentido. Quando aparece a foto de um homem-bomba, ele já está morto, e seu rosto tem a irrealidade de um ectoplasma. Quando finalmente se descobre algum terrorista foragido, seus traços fisionômicos são decepcionantes, porque é da natureza do atentado que tenha uma origem invisível.
Escrevo tudo isso não para desculpar, evidentemente, as atrocidades e torturas que temos diariamente no Brasil.
O que me incomoda é a atitude inversa, se posso dizer assim. Por autodefesa, talvez, diante do impacto causado por acontecimentos como o de Paris, é comum que muita gente queira relativizar o que aconteceu.
"Todos se comovem com as mortes na França, mas não lamentam as vítimas dos bombardeios ocidentais sobre os países árabes". Sim, é verdade, pelas razões que já apresentei.
O raciocínio pode levar a qualquer lugar. "Você lamenta as mortes causadas pela polícia, mas não lamenta os que foram mortos pelos bandidos." "Você faz campanha pela prevenção do câncer de mama, mas não liga para o câncer de intestino."
Podemos lembrar qualquer tragédia para minimizar outra.
Que me seja perdoada a comparação. Em 1944, algumas pessoas bem-intencionadas poderiam perfeitamente dizer: "Você se solidariza com os judeus assassinados nas câmaras de gás, mas não tem pena das crianças alemãs vitimadas pelo bombardeio dos aliados".
Tenho e terei pena das crianças alemãs vitimadas pelo bombardeio dos aliados. Mas seria tolo se não visse quem está desculpando quem.
Não há desculpa para fanáticos que escravizam mulheres e pessoas de outra origem, que não têm outro objetivo a não ser destruir o que tivermos de ciência, de tolerância, de humor, de música e de civilização.
Não somos plenamente civilizados, sei disso: o Ocidente conta em seu desfavor inúmeros atos de barbárie. Mas o Estado Islâmico é plenamente bárbaro; não conta em seu favor nenhum ato de civilização. O raciocínio do "mas você esquece que também... etc." serve apenas para desculpar o indesculpável.
Marcelo Coelho -
É membro do Conselho Editorial da Folha de S. Paulo e escreve às quartas no caderno "Ilustrada". Autor de romances e de coletâneas de ensaios, formou-se em Ciências Sociais e é mestre em Sociologia pela USP, com a dissertação "Brasília e a Ideologia do Desenvolvimento".
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