Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 21 de novembro de 2015
Quando os deputados dos EUA aprovaram o projeto de lei que pode dificultar ainda mais a entrada de refugiados sírios ao país, na quinta-feira, sob o argumento da segurança, eles apenas se esqueceram - ou ignoraram propositadamente, o que é mais crível - de que os terroristas responsáveis pelos atentados que deixaram 130 mortos em Paris eram franceses e belgas - a identidade do suicida perto do qual teria sido encontrado um passaporte sírio permanece um mistério. A comoção causada por grandes tragédias é frequentemente usada por aqueles no poder para manipular o eleitorado e desviar sua atenção de problemas mais difíceis de solucionar, como o terrorismo doméstico.
Os EUA hoje exportam mais combatentes para o Estado Islâmico (EI) do que o contrário - o placar é de 100 a zero. A França lidera o ranking em números absolutos, com entre 700 e 1.600 cidadãos, segundo diferentes fontes, enquanto a Bélgica tem mais jihadistas per capita no grupo do que qualquer outro país, com mais de 400.
Estatisticamente, e os americanos adoram estatísticas, medida mais sensata contra o terrorismo do que EUA e Europa se fecharem aos imigrantes sírios seria fechar as fronteiras da Síria para os terroristas estrangeiros que reforçam o exército do califado. Pelo menos três mil combatentes do EI na Síria e no Iraque são ocidentais. São esses que mais tarde voltarão aos seus países para disseminar o terror.
... Impedir que se refugiem na Europa ou EUA é precisamente o que quer o EI. Não existe um califado sem muçulmanos. Se todos emigrarem, a quem comandarão e onde irão recrutar combatentes? Mensagens recentes divulgadas pelo grupo demonstram a insatisfação de seus líderes com o êxodo de sírios rumo à Europa, que consideram como traidores e "infiéis"...
Refugiados fogem da morte nas mãos dos mesmos inimigos que o Ocidente combate - o EI e Bashar Assad. Muçulmanos são as principais vítimas do terrorismo. O Iraque lidera o Global Terrorism Index, com 9.929 mortos em 2014 - o equivalente a um atentado como o de Paris a cada cinco dias. Pelo menos 78% dos atentados terroristas no ano passado ocorreram no Iraque, Afeganistão, Nigéria, Paquistão e Síria.
Impedir que se refugiem na Europa ou EUA é precisamente o que quer o EI. Não existe um califado sem muçulmanos. Se todos emigrarem, a quem comandarão e onde irão recrutar combatentes? Mensagens recentes divulgadas pelo grupo demonstram a insatisfação de seus líderes com o êxodo de sírios rumo à Europa, que consideram como traidores e "infiéis". Não lhes dar proteção serve largamente à propaganda dos terroristas. Também ajudando a reforçar um sentimento latente de que o Ocidente é hostil a muçulmanos, o que em última instância os ajuda a recrutar estrangeiros.
É claro que um grande influxo de pessoas desconhecidas traz riscos para um país, não importa de onde venham. Mas mecanismos já estão em prática para evitar que terroristas se infiltrem entre os desesperados - nos EUA, o processo leva pelo menos 18 meses para ser aprovado, durante os quais o imigrante sírio passa pelo escrutínio dos principais órgãos de segurança, como o FBI.
Em março, o FBI prendeu mais de 70 americanos sob acusação de recrutar para o EI - entre eles, sobrenomes como Wolfe, Cornell, McCain, Morgan, convertidos e radicalizados nos EUA. O Centro de Segurança Nacional da Universidade de Fordham analisou perfis de 68 indiciados nos EUA por algum grau de envolvimento com o grupo nos últimos 18 meses. Apenas três não eram americanos e seis tinham cidadania do país, mas eram nascidos no exterior. Eles planejavam atentados em casa.
Uma das lições que os atentados em Paris nos trazem é que a maior preocupação está nos cidadãos europeus radicalizados, que viajaram ou não à Síria, último estágio da lavagem cerebral que ocorre em casa.
Na Europa, centenas, se não milhares, de jovens estão sendo radicalizados em áreas como Molenbeek, nos arredores de Bruxelas, e Bobigny, na periferia de Paris, que têm três características essenciais: maioria muçulmana, alto desemprego e baixa integração com o restante da sociedade.
A Europa precisa cuidar de seus guetos.
Adriana Carranca -
Jornalista, premiada e reconhecida internacionalmente. Repórter especial do jornal O Estado de S.Paulo. Cobriu extensamente a guerra no Afeganistão e acontecimentos importantes no Paquistão, Irã, Egito, Israel, territórios palestinos, Haiti, México, Estados Unidos e Grã-Bretanha, Uganda, Congo, Sudão do Sul, entre outros países. Vários livros publicados.
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