Stieg Larsson tornou-se milionário após a morte. Por uma dessas incompreensíveis ironias do destino, o jornalista sueco de 50 anos não possuía nem um tostão no bolso quando sofreu um infarto fulminante ao subir as escadas do prédio onde trabalhava. Pouco depois, porém, seu livro, o primeiro de uma trilogia policial chamada Millennium, e que chegou às livrarias após a morte do autor, tornou-se um fenômeno mundial. Estima-se que seus livros já tenham rendido cerca de US$ 30 milhões, e isso sem contar futuras cifras provenientes de adaptações holywoodianas de sua obra.
Talvez você esteja se perguntando o que a história de um escritor sueco que morreu antes de saber que seria rico e famoso tem a ver com uma coluna sobre Direito. Já vou explicar. Ocorre que a fortuna deixada por Larsson virou objeto de uma renhida batalha judicial disputada nos tribunais suecos, e que mobilizou a opinião pública do país. Os protagonistas dessa guerra pelo espólio são, de um lado, o pai e o irmão do autor e, do outro, a companheira com quem ele vivia desde a adolescência, a arquiteta Eva Gabrielsson. O grande nó da questão é que a lei sueca não reconhece os direitos da companheira.
Para ser herdeira de Larsson, Eva teria de ser legalmente casada com ele ou, então, ser beneficiada em seu testamento. Inconformada, a arquiteta resolveu apelar à justiça. Mas, para complicar um pouco mais as coisas, o escritor deixou um testamento. Elaborado quando ele ainda era muito jovem, o documento assinado por Larsson beneficia uma agremiação comunista. Porém, como não segue determinados aspectos legais, o testamento foi invalidado. Assim, digladiaram-se na arena
judicial a companheira injustiçada e Erland e Joakim Larsson, respectivamente pai e irmão do falecido escritor.
Difícil saber como essa história acabou. Contudo, se situação semelhante houvesse ocorrido no Brasil, o resultado seria mais fácil de prever. Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, a legislação brasileira reconhece a união estável e os direitos do companheiro e da companheira.
Entre esses direitos está o de herdar parte do que foi adquirido a título oneroso ao longo da união - mesmo que não tenha contribuído financeiramente para sua aquisição. A parte que lhe cabe irá depender da existência ou não de outros herdeiros. Se o casal teve filhos, a companheira ou o companheiro sobrevivente terá direito a uma parte igual a que lhes cabe. Se os filhos forem apenas do falecido, a companheira fica com metade do que couber a cada um dos descendentes. Não havendo descendentes (isto é, filhos, netos, bisnetos), mas existindo outros herdeiros, o companheiro ou companheira terá direito a receber um terço da herança. Lembrem-se, porém, que estamos falando apenas do que foi adquirido durante a união. A única hipótese na qual o companheiro herda tudo - inclusive o que foi adquirido antes da união estável - é no caso de o falecido não ter deixado nenhum outro herdeiro.
Sendo assim, se vivesse no Brasil, Eva ficaria com um terço da fortuna de Larsson, e o restante iria para o pai dele. E o irmão? Sinto informar, ficaria a ver navios. Acontece que, de acordo com nossa legislação, a existência de uma classe de herdeiros exclui a próxima. Isso significa que os ascendentes (pais, avós, bisavós) só herdam alguma coisa se o falecido não tiver descendentes. E os irmãos participam da herança apenas se o falecido não tiver deixado ascendentes, nem descendentes, nem cônjuge. Como o pai de Larsson está vivo, o irmão do autor ficaria, segundo nosso Código Civil, excluído da herança.
Ao contrário da lei sueca, no Brasil os membros de uma união estável são beneficiados - mas até certo ponto. Em se tratando de herança, a legislação brasileira ainda privilegia os que são oficialmente casados. O cônjuge só partilha a herança com os descendentes e os ascendentes do falecido. Na inexistência destes, o cônjuge é o único herdeiro. Já o companheiro tem de partilhá-la com qualquer herdeiro sucessível, isto é, também os com irmãos, tios ou primos do autor da herança. Além disso, antes que possa reivindicar qualquer coisa, o membro sobrevivente precisa ingressar com uma ação judicial para reconhecer a união estável, o que inclui a apresentação de uma série de provas que confirme a relação do casal. Para os que são casados, porém, a única comprovação necessária é a certidão de casamento. Essa situação não deixa de ser injusta para quem vive em união estável.
Afinal, se nossos legisladores tiveram o bom senso de reconhecer esse tipo de relacionamento na Constituição e no Código Civil, por que mantê-lo em condição de inferioridade ao casamento no que diz respeito à distribuição da herança? Ainda assim, apesar dessas restrições, as pessoas que vivem em união estável têm mais vantagens no Brasil do que em outros países. A companheira de Larsson que o diga...
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Ivone Zeger - É advogada especialista em Direito de Família e Sucessão. Membro efetivo da Comissão de Direito de Família da OAB/SP é autora dos livros "Herança: Perguntas e Respostas" e "Família: Perguntas e Respostas" - da Mescla Editorial www.ivonezeger.com.br
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