Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo, Tendências/Debates, edição de 15 de fevereiro de 2015Publicidade
Tenho particular admiração pelos 11 ministros da Suprema Corte. Todos eminentes juristas, com atuação doutrinária marcante no direito brasileiro, independentemente da atuação como magistrados.
Nem por isto, apesar de velho advogado provinciano e modesto professor universitário, concordo com muitas de suas decisões.
Um dos pontos de divergência diz respeito à decisão sobre o processo de impeachment da presidente Dilma, que hierarquizou o Senado Federal, como casa julgadora da Câmara dos Deputados e não apenas da presidente da República.
Reza o caput do artigo 86 da Constituição que "Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade".
Por tal dispositivo, admitida a abertura de processo de impeachment pela Câmara, cabe ao Senado apenas dar curso ao referido processo, em nenhum momento permitindo a lei maior que o Senado julgue a Câmara, para dizer se agiu ou não corretamente.
Vale a pena lembrar a origem do Senado. Foi ele criado, nos EUA, para assegurar a escravidão. Com efeito, de 1776 a 1787, discutiu-se se deveria ser, a América do Norte, uma confederação de 13 países ou uma Federação de 13 Estados.
As colônias do Sul, que viviam da agricultura e consideravam o trabalho escravo relevante, não queriam aceitar nem a Federação, nem uma única Casa Legislativa, pois, tendo os Estados do Sul menos população, seria fácil aos Estados do Norte abolirem, como muitos já desejavam, a escravidão de imediato.
A solução encontrada foi criar uma Casa Legislativa em que, não o povo, mas as entidades federativas fossem representadas em igualdade de condições. Com isto, surgiu o Senado e atrasou-se em aproximadamente 80 anos a abolição daquela chaga.
Ora, a autêntica Casa do Povo é a Câmara dos Deputados. Para o Senado o povo escolhe um ou dois nomes indicados sem opção pelos partidos, não tendo o pleito o amplo espectro que as eleições para Deputados ofertam para os eleitores.
Por esta razão, inúmeras federações não têm Senado, como, por exemplo a Alemanha, em que apenas o "Bundestag" é considerado Parlamento e não o "Bundesrat".
Subordinar a Casa do Povo à Casa do Poder, tornando-a uma Casa Legislativa de menor importância, como o fez o STF, é subverter por inteiro o Estado democrático de Direito, onde a Câmara, que tem 100% da representação popular, resta sujeita ao Senado, em que os eleitores escolhem um ou dois nomes pré-estabelecidos e que, indiscutivelmente, traz a marca de origem de ter sido a instituição que garantiu a escravidão americana por 80 anos, antes da Guerra de Secessão.
Com todo o respeito que um idoso operador de direito tem pelo talento, cultura e brilhantismo dos 11 ministros do STF, parece-me que subverteram o princípio constitucional, tornando-se poder constituinte originário sem que para isto tivesse o Supremo competência, visto que é apenas o guardião da Constituição (artigo 102).
A meu ver, cabe ao Senado, uma vez admitido o processo de impeachment, apenas julgar o presidente e nunca julgar, inicialmente, a Casa do Povo e, se entender que a Câmara não errou, julgar, em segundo lugar o presidente.
Nenhuma das instituições legislativas está sujeita ao julgamento de outra pela lei maior (artigos 44 a 58), razão pela qual entendo, "data maxima venia", que os eminentes Ministros do Pretório Excelso invadiram área interditada por ser da competência exclusiva do Congresso.
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, 79-
Advogado, é professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra
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