Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 23 de fevereiro de 2016
No mesmo dia em que a presidente Dilma Rousseff diz que enviará ao Congresso nacional um projeto de reforma da Previdência Social, o seu ministro do Trabalho e Previdência Social junto com parlamentares do Partido dos Trabalhadores (PT) dizem que não concordam com isso. E a presidente aceita. Será que tudo não passa de mera encenação?
Temos de ser realistas. É inevitável mudar as regras legais que criam despesas obrigatórias insustentáveis.
Há recursos para manter indefinidamente um sistema previdenciário em que as pessoas vivem, em média, 75 anos e se aposentam com 55 anos?
Há recursos para continuar com as aposentadorias precoces de mulheres e professores? E para aposentar rurais sem contribuição?
Há recursos para sustentar o valor da aposentadoria dos funcionários públicos dez vezes maior do que a dos empregados do setor privado?
Eu não estou perguntando se isso é justo ou injusto. Indago apenas se há recursos. E a resposta é não. Os dados estão aí. O déficit da Previdência Social (pública e privada) chegou a R$ 164 bilhões em 2015. E será muito maior daqui para a frente.
Já que estou fazendo perguntas a respeito da disponibilidade de recursos, adianto mais algumas que envolvem outros desequilíbrios criados por lei: há recursos para manter os filhos das famílias ricas nas universidades públicas gratuitamente? Há recursos para manter uma jornada de apenas 6 horas para bancários, 5 horas para jornalistas e 4 horas para advogados?
Se, de um lado, não há recursos, deve-se dizer que nada disso é ilegal. São desequilíbrios criados e sustentados pelas leis vigentes. É isto mesmo: muitas das nossas leis são fontes de graves desigualdades sociais. E isso se aplica a vários dispositivos constitucionais.
No Contrato Social de 1762, Rousseau dizia: "Se me perguntarem como puderam os homens chegar a tanta desigualdade, eu não sei responder. Mas, se me perguntarem como pôde tamanha desigualdade ser legitimada, isso eu sei responder... A legitimação veio das convenções criadas pelos próprios homens (as leis). Afinal, o direito nada mais é do que o poder convencionado" (Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a desigualdade, in Obras, Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1958).
Essa é a questão. No Brasil, os insiders conseguem aprovar leis que os protegem, criando uma vida infernal para os outsiders. Quem analisa os projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional vê a profusão de propostas que criam obrigações sem a contrapartida de recursos. No fundo são obrigações que, para serem cumpridas, oneram os preços dos bens e serviços.
Em cima de tudo isso o povo brasileiro elegeu um governo que agravou as distorções, implementou políticas econômicas equivocadas e criou mais despesas para uma receita cadente.
Vamos falar claro: para o País sair desta crise é imperioso fazer mudanças no atual quadro legal. Na Constituição de 1988 a palavra direito aparece 76 vezes; dever, 4 vezes; produtividade, 2; e eficiência, 1 vez. Como governar um país que tem 76 direitos, 4 deveres, 2 produtividades e 1 eficiência?
Não há escapatória. A saída da crise exigirá uma reavaliação dos sonhos criados por nossa Constituição. É uma tarefa difícil e que exigirá uma liderança confiável que hoje não existe, mas que pode emergir quando o medo e o pânico tomarem conta dos agentes econômicos, fazendo-os ver ser inevitável perder alguns anéis para conservar os dedos. A volta da confiança é essencial para o sucesso de uma concordata desse tipo.
Certo dia o discípulo perguntou a Confúcio: "O que é importante para bem governar um país?". Confúcio disse: "Que o governante tenha armamento, alimento e confiança".
- E se eu não puder dispor dos três? De qual devo abrir mão?
- Abra mão do armamento.
- E se eu não puder dispor dos dois?
- Abra mão do alimento porque, sem a confiança do povo, é impossível governar um país.
José Pastore - * Professor da FEA-USP, é presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Fecomercio-SP e membro da Academia Paulista de Letras