Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, página 2, edição de 28 de março de 2016
RIO DE JANEIRO - Dercy Gonçalves me telefonou certa vez convidando-me a escrever sua biografia. Ela lera meus livros "O Anjo Pornográfico", sobre Nelson Rodrigues, e "Estrela Solitária", sobre Garrincha, e se convencera de que eu era o homem para narrar sua riquíssima vida. Dercy já então caminhava para os 100 anos. Respondi-lhe que, justamente por admirá-la tanto e querer que vivesse para sempre, não podia pegar a empreitada.
Dias depois, entrevistada por Hebe Camargo na TV, Hebe lhe perguntou quando iriam escrever sua biografia. Dercy respondeu: "Sei lá! Convidei o tal do Ruy Castro, mas ele só gosta de morto!".
Há anos me bato pela ideia de que é arriscado biografar uma pessoa viva. E por um motivo simples: sua história ainda não terminou. A própria Dercy, no Carnaval de 1991, coroara sua inacreditável carreira desfilando pela Viradouro na Marquês de Sapucaí, aos 84 anos (na verdade, 86), numa alegoria a dez metros de altura. E com os seios de fora -que a avenida, estupefata, aplaudiu. Quem garantia que não iria ainda se superar, pulando de asa delta da pedra da Gávea ou se casando com d. Helder Câmara?
O biografado vivo não é confiável. Às vezes, depois de uma vida unanimemente admirada e narrada numa grande biografia, ele comete algo discutível ou polêmico -e, com isso, mela o livro. Aconteceu com "Woody Allen - Uma Biografia", de 1991, por Eric Lax, que levou 19 anos trabalhando nela e com acesso direto ao personagem. A crítica a saudou como a biografia definitiva de Woody. Um ano depois, houve o escândalo envolvendo-o com sua enteada Soon-Yi. O episódio maculou o livro, não por não ter sido descrito, mas pelo Woody anterior a ele e que Lax não foi capaz de perceber.
Lula já melou as várias biografias que lhe escreveram. Mas a que irá valer só será escrita no futuro.
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Ruy Castro* -
É jornalista e escritor. Já trabalhou nos jornais e nas revistas mais importantes do Rio e de São Paulo. Considerado um dos maiores biógrafos brasileiros, escreveu sobre Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda
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