Capa

Artigos

Diálogo com a tesoura. Por Fernando Gabeira

Superficialmente, o fim do ministério foi saudado porque muitos viam nele apenas um espaço para cooptar artistas por meio de isenções fiscais. O BNDES também cooptou empresários com juros subsidiados. Vamos fechar o BNDES?

20.05.2016  |  124 visualizações
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO ESTADÃO, "OPINIÃO", E NO SITE OFICIAL DE FERNANDO GABEIRA, WWW.GABEIRA.COM.BR, 20 DE MAIO DE 2016


Quando ouço a palavra cultura, saco minha tesoura. É razoável que se pense assim num momento de crise aguda. Não entendo, porém, o fim do Ministério da Cultura.


O governo Temer nasceu de uma emergência, teve pouco tempo para se estruturar. Sua prioridade é correta: reconstrução econômica. Sua tática, também: conquistar a maioria no Congresso para aprovar as medidas saneadoras. Paga-se um preço, mas, enfim, é a única saída real. Compreendo, portanto, que o governo Temer ainda não tenha uma política cultural. Esta é a primeira crítica: é preciso ter política para, depois, definir o instrumento.


Secretaria ou ministério, qual o melhor? Depende. Quando saiu da secretaria do MEC, o Ministério da Cultura foi rebaixado. Perdeu a Roquete Pinto e a TVE. Gilberto Gil tentou recuperar a TV quando Lula a recriou. Perdeu para uma corrente que dirigia a comunicação.


Na França os dois são unidos, Ministério da Cultura e Comunicação. Superficialmente, o fim do ministério foi saudado porque muitos viam nele apenas um espaço para cooptar artistas por meio de isenções fiscais. O BNDES também cooptou empresários com juros subsidiados. Vamos fechar o BNDES?


Uma coisa é economia, outra é cultura, pode-se argumentar. No entanto, elas não andam tão separadas. Num mundo de crescente produção imaterial, a dimensão econômica da cultura é estratégica.


Existem menções a ela no plano de governo de Collor. Seu programa elogiava grupos culturais com sensibilidade para a audiência e uma estrutura empresarial. No mesmo parágrafo, critica os que se apoiam nas asas do Estado para esconder sua mediocridade. Sem mediações adequadas, Collor falhou.



O patrimônio artístico e histórico do Brasil vive momentos difíceis e ameaçadores. Digo porque trabalho também com ele, visitando de estátuas do Aleijadinho ao sítio de Burle Marx. Pode-se argumentar que nosso patrimônio não tem o mesmo valor do de países mais velhos. Mas é o nosso patrimônio, um fragmento no mosaico da diversidade humana.



No governo Fernando Henrique, José Álvaro Moisés levava o tema adiante, com o slogan "cultura é um bom negócio". Hoje, acredito que não apenas a tecnologia e o conhecimento científico transferem valor às coisas. A cultura também o faz.


Trabalho com isso no cotidiano, documentando experiências do que chamamos economia criativa. Recentemente, na Praia do Jacaré, na Paraíba, mostrei a história de um saxofonista que ergueu uma comunidade de negócios em torno dele. Todas as tardes, às 18 horas, ele sobe num barquinho e toca o Bolero de Ravel. Com o tempo, o lugar superlotou, surgiram lojas, bares, restaurantes. Num deles, há um peixe à Maurice Ravel no cardápio. Mesmo quem não gosta de Ravel ou mesmo do peixe que leva seu nome reconhece que, de uma certa forma, é a cultura que move o lugar.


Os chamados pontos de cultura, do programa do PT, que não conheço na totalidade, já revelaram para mim um caso de êxito em Arraial do Cabo. O ponto de cultura transformou-se num ponto de encontro e venda do artesanato local.


É preciso que Temer mostre a sua visão para que seja um parâmetro para a crítica. O debate está todo concentrado no financiamento indireto de artistas, como se fosse o único tema.


O patrimônio artístico e histórico do Brasil vive momentos difíceis e ameaçadores. Digo porque trabalho também com ele, visitando de estátuas do Aleijadinho ao sítio de Burle Marx. Pode-se argumentar que nosso patrimônio não tem o mesmo valor do de países mais velhos. Mas é o nosso patrimônio, um fragmento no mosaico da diversidade humana.


Intelectuais como Mário de Andrade percorreram o Brasil colhendo expressões culturais, outros, como Rodrigo Melo Franco, lutaram para que os monumentos fossem preservados e vistos. Na confluência de Estado e cultura, o designer e pintor Aloisio Magalhães trabalhou para inventar um instrumento de gestão que atendesse a todos.


Acabar com o MinC e anexá-lo de novo à Educação, pôr tudo nas mãos de um deputado não familiarizado com o problema, é uma escolha problemática.


A TV estatal tem traço de audiência, dinheiro jogado fora. Por que não fazer dela uma incubadora de pequenas empresas culturais? Isso é só uma possibilidade. Sei que passível de condenação, sob o rótulo de mercantilismo. O mecenato é frágil. Fora do mercado, não há Estado que nos ampare. Ainda mais falido e com grandes problemas sociais.


Existem situações em que o Estado financia um grupo artístico. Mas grupos de reconhecido prestígio cultural, como é o de Pina Bausch, na Alemanha. Os americanos promoveram um tour mundial do Modern Jazz Quartet. Em plena recessão, comissionaram o escritor James Agee e o fotógrafo Walker Evans para produzir um belo livro: Vamos Elogiar o Homem Comum.



É preciso vir mais devagar. Os novos dirigentes devem perceber que fecharam vários ministérios e só dois deram o que falar: os da Cultura e da Ciência. Espero que não confundam a cultura com um grupo de artistas. Ela envolve também milhares de trabalhadores na indústria e, sobretudo, o afeto de grande parte dos brasileiros.



Tudo isso é calculado. No caso do Modern Jazz, como exercício do soft power, que também, dentro dos limites, podemos exercitar. No caso do livro, foi uma tentativa de levantar o moral, mostrando a força do homem comum na devastadora crise econômica.


Se o problema for só dinheiro, é preciso lembrar que se pode ter uma estrutura mais ágil e ampliar as parcerias com a iniciativa privada. E com boas ideias, em vez de apenas isenções.


É preciso vir mais devagar. Os novos dirigentes devem perceber que fecharam vários ministérios e só dois deram o que falar: os da Cultura e da Ciência. Espero que não confundam a cultura com um grupo de artistas. Ela envolve também milhares de trabalhadores na indústria e, sobretudo, o afeto de grande parte dos brasileiros.


No Brasil, muita coisa ainda gira em torno desta quase ficção: direita-esquerda. Se acham, por exemplo, que um Ministério da Cultura é algo de esquerda, lembrem-se de André Malraux no governo De Gaulle. Embora tenha lutado na Guerra Civil Espanhola, não era de esquerda. De Gaulle, muito menos.


José Serra assumiu a política externa. A cultura tem um papel econômico e simbólico em nossa relação com o mundo. Não conheço sua opinião, mas seria interessante saber como, para ele, cultura e política externa se entrelaçam, que instrumento é o adequado para o governo.


Por favor, saquem a sua tesoura, mas também algumas ideias. Não comecem cortando no pescoço.



___________________________________________________


Fernando Gabeira In Campaign At Ipanema Sidewalk

Fernando Gabeira*- é escritor, jornalista e ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro. Atualmente na Globo News, onde produz semanalmente reportagens sobre temas especiais, por ele próprio filmadas (no ar aos domingos, 18h30, e em reprises na programação). Foi candidato ao Governo do Rio de Janeiro nas últimas eleições. Articulista para, entre outros veículos, O Estado de S. Paulo e O Globo, onde escreve aos domingos.

Seu blog é no http://www.gabeira.com.br/


-----------------------------------------------------------------------

CHUMBO GORDO


Este artigo pode ser lido também no CHUMBOGORDO.com.br, nosso novo site jornalístico, que vai reunir a cada dia algumas feras do jornalismo, da informação, das charges e imagens, articulistas e comentaristas. Tudo o que você esperava. Informação com humor e bom senso.


Não deixe de visitar, curtir, recomendar aos amigos. Assine nossa newsletter