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Aulas, só para os outros. Por Carlos Brickmann

- Discriminação religiosa nas escolas -

28.09.2017  |  165 visualizações

Aulas, só para os outros

Carlos Brickmann

...tudo aquilo que aprendi na vida, que o Brasil é uma república laica, democrática, em que todos são livres para professar sua religião, ou para não professar religião nenhuma, era falso. Pois não é que agora se pode doutrinar os alunos na religião do professor, tornando assunto do Governo uma questão que, acredito, deveria ser individual e familiar?...

Tenho parentes e amigos advogados, aprendi que 11 de agosto é o aniversário da abertura dos cursos jurídicos em Olinda e São Paulo, sei onde ficam as faculdades de Direito da USP e da PUC, tenho os telefones de excelentes fontes de informação sobre questões legais. Encerram-se aí meus conhecimentos de Direito. Quem sou eu, portanto, para criticar uma decisão do Supremo Tribunal Federal?

Só posso imaginar que tudo aquilo que aprendi na vida, que o Brasil é uma república laica, democrática, em que todos são livres para professar sua religião, ou para não professar religião nenhuma, era falso. Pois não é que agora se pode doutrinar os alunos na religião do professor, tornando assunto do Governo uma questão que, acredito, deveria ser individual e familiar? Enfim, se o Supremo acha que isso não viola a Constituição, deve ter razão. Não é este analfabeto em Direito que irá contestar sua decisão. Posso apenas contar uma história. A minha história.

Nada daquilo em que acredito combina com a decisão do Supremo de permitir que, numa república laica, haja professores pagos pelo Estado para difundir suas crenças religiosas pessoais. Mas como podemos nós, pessoas comuns, contestar o Supremo?

Tinha sete anos de idade. Um garoto do Interior, transferido do Grupo Escolar Torquato Caleiro, na Franca, SP, para o Grupo Escolar São Paulo, na capital, ambos da rede pública. O Grupo Escolar São Paulo (hoje Professora Marina Cintra) era uma boa escola: saí de lá no final do curso primário – os primeiros quatro anos, conforme as normas da época – sabendo ler, escrever, fazer as quatro operações, cantar o Hino Nacional, da Independência, da Proclamação da República, e dizer quem eram os autores de cada um. Lia sem parar. E, feito o exame de admissão, obrigatório, entrei no principal ginásio público da cidade, a escola-modelo Caetano de Campos.

Tudo bem? Nem tanto: no grupo havia aulas de religião – ou seja, da religião católica, com catecismo e tudo. E eu, judeu, saía da classe e ficava no pátio do recreio, sozinho, aguardando o final da aula de religião. Os demais alunos achavam que eu era privilegiado, por escapar das rezas e ensinamentos edificantes; eu me sentia discriminado, pela exclusão de atividades a que, embora estudante como todos os colegas, não tinha direito.

Não, eu não queria aulas de judaísmo: vovô Jacob, profundamente religioso, estaria sempre disposto a dá-las. Perto de casa, havia duas sinagogas, onde também poderia aprender alguma coisa, se quisesse (uma delas, aliás, ensinou-me a reconhecer alguns sinais de perigo. Depois que completei 13 anos, idade em que um judeu se torna religiosamente adulto, passei a ter minha presença requisitada nas orações em que faltava o quórum mínimo de dez participantes – o miniam. Quando um grupo de homens formalmente vestidos saía da sinagoga em direção à minha casa, eu sumia antes de ser voluntariado para a tarefa). Era, como hoje, um judeu consciente, mas não praticante.

Se eu não queria aprender judaísmo, nem catolicismo, de que me queixava?

Da discriminação: em determinado momento, a professora me mandava para fora da classe, separado dos colegas. Eles podiam ficar, eu não podia. E, talvez já naqueles tempos de garoto, eu tivesse a semente do que hoje penso: religião é assunto pessoal, é assunto de família. Cabe-nos respeitar a crença de todos, tendo como limite que não seja usada para discriminar os outros ou prejudicar a vida diária. Não quero que, como aconteceu no meu bar-mitzvah, a cerimônia em que passei a ser adulto em termos religiosos, haja uma separação religiosa – boa parte de meus amigos católicos foi informada por padres diversos de que entrar numa sinagoga seria pecado, e muitos não foram.

Prefiro a convivência em que amigas católicas da família, Leda e Maria Regina Caldeira, mandaram rezar a missa de sétimo dia de meu pai na Igreja do Divino Espírito Santo; estivemos todos lá, inclusive meu avô religioso. Ou a convivência em que subi ao altar da igreja da rua Tutóia para puxar parte da missa de sétimo dia de um grande amigo católico, Ewaldo Dantas Ferreira, e usei uma reza hebraica que é a base de todas as religiões monoteístas (“o Senhor é nosso Deus, o Senhor é um só”).

Nada daquilo em que acredito combina com a decisão do Supremo de permitir que, numa república laica, haja professores pagos pelo Estado para difundir suas crenças religiosas pessoais. Mas como podemos nós, pessoas comuns, contestar o Supremo? Como dizia o lendário juiz americano Oliver Wendell Holmes, que passou 30 anos na Suprema Corte, “juiz não faz Justiça, juiz aplica a lei”.

O Supremo deve entender como aplicar a lei.

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CARLOS BRICKMANN - é jornalista. Diretor do Chumbo Gordo.

carlos@brickmann.com.br

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