Coluna - Observatório da Imprensa
Um dos motivos que levaram este colunista ao jornalismo, e não a profissões mais bem pagas, foi a incapacidade de trabalhar com Matemática. Tudo bem, dá para lidar com números: sempre que as contas aparecem, é só procurar quem saiba resolvê-las. O importante nem sempre é saber as coisas, o importante é conhecer o telefone de quem saiba.
O problema é o telefone: tem de procurar o número, pegar o aparelho, digitar, falar "alô", essas coisas que cansam. Resultado: não é sempre que matérias que envolvam cifras trazem informações confiáveis. E ai de quem se guiar por elas.
Milhão, bilhão, mil, trilhão, é tudo a mesma coisa. Até aí, já virou até normal: basta o consumidor de informação tentar descobrir a quantidade certa pelo sentido do texto. Mas às vezes as coisas extrapolam. Numa única reportagem de um grande jornal impresso, de circulação nacional, sobre o déficit comercial brasileiro em janeiro - US$ 4,035 bilhões - há as seguintes não-informações:
1 - maior déficit em 24 anos. Errado: o maior déficit anterior, de US$ 1,787 bilhões, ocorreu em dezembro de 1996, no Governo Fernando Henrique. O atual, portanto, é o maior déficit em 16 anos, não em 24.
2 - O déficit de dezembro de 1996 representava metade de tudo o que o Brasil exportou. Errado:
"Em dezembro de 1996, o déficit representava metade de tudo que o Brasil exportou". Mais ou menos: metade de tudo o que o Brasil exportou naquele mês, não naquele ano. Aliás, também não era a metade: era pouco menos da metade.
3 - Talvez se tenha tomado como base, para dizer que o déficit foi o maior em 24 anos, o início da série histórica, em 1990. Mas de 1990 a 2013 também não dá 24 anos.
4 - A matéria informa que o déficit de 2013 equivale a três dias de exportações. Não é bem assim: os US$ 242 bilhões exportados no ano passado significam US$ 0,8 bilhão por dia útil. Ou seja, o déficit equivale a cinco dias de exportações, mais algumas quireras. Se considerarmos que o consumidor de informação paga por elas, e paga porque toma decisões baseados nelas, talvez tenhamos uma pista sobre alguns problemas econômicos da indústria de comunicação.
Ô, gente chata!
A grande moda, naquilo a que se chama de "redes sociais", é divulgar informações amplamente conhecidas e jurar que não saíram em lugar nenhum, nem sairão. Por exemplo, uma vacina cubana contra o câncer, com a frase "uma lição na máfia da indústria farmacêutica e a advertência: "Isso nunca será notícia na TV". Não será, mesmo: já foi. E o link da fonte original da informação remete a que?
Bingo! Ao noticiário de uma grande rede brasileira de TV e a seu grande portal de notícias. E quem é que divulga que isso "nunca vai sair na televisão"? Uma jornalista. Esquisito? Pois é. Mas é preciso dizer de alguma maneira que a medicina cubana é a mais avançada do Universo e que isso só não é mundialmente reconhecido porque os meios de comunicação brasileiros boicotam a importante notícia.
Outra coisa interessante é o Mensalão: até Abraham Lincoln já foi apontado como distribuidor mensal de propinas, com o nobre fim de abolir a escravidão nos Estados Unidos. Tudo que envolva corrupção em qualquer lugar precisa ser amplamente divulgado, para que o Mensalão não seja considerado tão grave assim. O último caso é o do Mensalão espanhol, aparentemente, aliás, bem parecido com o brasileiro. Pipocaram as mensagens acusando a imprensa de não divulgar o Mensalão espanhol, enquanto divulga o brasileiro.
E de onde saíram as notícias sobre o Mensalão espanhol, que o pessoal propaga como se fossem informações sigilosas? Da imprensa brasileira, que por sua vez dá não apenas as notícias como também os comentários dos jornais espanhóis. Um jornalista famoso andou entrando nessa onda e, quando lhe perguntaram qual a fonte de suas informações secretíssimas, concordou: dos meios de comunicação daqui mesmo. Mas reclamou que o noticiário não era tão amplo quanto o do Mensalão brasileiro. Claro (e ele sabe disso): o roubo do dinheiro público brasileiro é, para os leitores brasileiros, mais importante que o roubo do dinheiro público espanhol. Na Espanha, pode ter certeza, o destaque dado pelos meios de comunicação ao Mensalón é maior que o obtido pelo Mensalão.
E isso não acontece de um lado só. Há o famoso caso do Livro Proibido sobre o presidente Lula - livro que teria sido censurado por contar uma série de fatos sobre Sua Excelência que o PT odiaria ver divulgados. Acontece que o livro não foi proibido, nem censurado: duas editoras o recusaram e o autor preferiu, em vez de continuar a procurar quem o editasse, desistir de qualquer remuneração e colocar o livro gratuitamente na Internet. Quem quiser lê-lo não precisa pagar um tostão. Mas, se quiser fazê-lo, o livro acabou sendo publicado há uns dois anos, em papel, tudo direitinho. Quem preferir pagar por ele o terá em sua estante.
E, apesar disso, continua-se a discutir o Livro Proibido, como se proibido fosse.
Mas que é que se pode fazer quando jornalistas que perderam lugar na imprensa acham que sua missão ideológica sagrada é agora tentar destruí-la? Ou quando ativistas de outros partidos resolvem atirar no PT sem se dar ao trabalho de buscar informações confiáveis?
Alô, mamãe!
Três jornalistas de primeiro time da Rede Bandeirantes, Rodrigo Hidalgo, Agostinho Teixeira e Henrique Pereira, apuraram uma história excelente: uma loja em São Paulo vendia ilegalmente fogos de artifício (e os armazenava em grande quantidade, o suficiente para destruir boa parte do quarteirão). Pior: ao lado do depósito irregular, crianças trabalhavam na fabricação de pipas. Tudo pronto, reportagem com câmera oculta e tudo, e o delegado Hélio Bressan, da Divisão de Produtos Controlados da Polícia Civil, foi procurado para confirmar que tudo aquilo era ilegal.
A Polícia decidiu realizar o flagrante. Só que, antes, informou a Secretaria da Segurança, que imediatamente avisou a toda a imprensa, violando a exclusividade da Rede Bandeirantes. Deslealdade flagrante: a Polícia nem sabia do fato, soube pelos repórteres e os traiu em seguida, impedindo-os de dar a notícia exclusiva. Relação de confiança? O importante, para quem violou a confiança dos repórteres, é fazer seu brilhareco com outras emissoras e, mais tarde, aparecer diante das câmeras, não sem antes avisar a família inteira. Como na frase clássica de Agnaldo Timóteo, ao subir pela primeira vez na tribuna da Câmara dos Deputados, "alô, mamãe!"
Os três repórteres que levantaram o caso cometeram um erro: confiaram nas autoridades paulistas. As autoridades cometeram um erro muito maior: mostraram que, para beneficiar-se de câmeras e holofotes, são capazes de jogar fora qualquer tipo de compromisso.
Santa Maria
A cobertura da tragédia da boate Kiss, de Santa Maria, foi ampla, variada e, no geral, muito bem feita. O sensacionalismo foi evitado, as perguntas idiotas ("como é que o Sr. se sente com a morte de seus filhos?") praticamente não ocorreram, os dramas familiares foram apresentados com sobriedade e respeito.
Os pecados aconteceram - como é comum - quando jornalistas resolveram dar opiniões em vez de fazer reportagens. Um dos comentários mais chocantes foi o de que, se em vez de universitários, a boate estivesse cheia de gays, os meios de comunicação não teriam dado tanta importância ao incêndio.
É curioso: quantos dos presentes à balada eram gays? Ninguém perguntou, a ninguém interessa. A comoção não ocorreu em virtude da orientação sexual dos frequentadores da boate, ou de sua classe social. A comoção ocorreu porque morreram centenas de pessoas, homens e mulheres, menores de idade ou maiores de idade, gays e héteros, gremistas e colorados, vítimas de uma cadeia de erros e irresponsabilidades. A comoção ocorreu - é simples assim - porque morreu gente.
Como...
Do título de um anúncio de uma empresa de comunicação: