Coluna - Observatório da Imprensa
Terminou, enfim: depois de muitos dias, depois de muitas manchetes, depois de páginas e páginas de jornais, a Medida Provisória que modifica a legislação dos portos foi aprovada. O noticiário foi amplo: um deputado acusou o outro, um parlamentar disse que a MP não era dos Portos, e sim dos Porcos, porque havia muita sujeira, não sei quem procurou obstruir a votação para fazer com que o prazo fatal se escoasse, outro alguém mandou buscar senadores em casa para garantir número, houve quem se queixasse de que a medida foi aprovada sem ser lida, já que chegou ao Senado tão em cima da hora que foi logo para a votação.
Mas, na frase clássica dos publicitários americanos, "where is the beef?" Cadê a carne? Onde está o núcleo da questão? Quem ganha, quem perde? Todo o noticiário girou em torno do balê parlamentar e dos torneios de florete de Governo e Oposição, esquecendo-se a clássica procura da carne debaixo do angu. No máximo, os meios de comunicação aceitaram como boa a informação do Governo, de que a medida era um passo à frente, no caminho do progresso.
E qual Governo diria que a medida por ele proposta era um passo para trás, no caminho do atraso? Como está virando hábito, os meios de comunicação confiaram, quando sua obrigação é sempre desconfiar.
No último dia da votação, houve algum esforço jornalístico para mostrar o que mudaria na legislação portuária caso fosse aprovada a Medida Provisória. OK, foi um passo. Mas quem ganha e quem perde? Que é que o gigantesco congestionamento de caminhões a caminho do Porto de Santos tem a ver com o caso, se é que tem algo com isso? Alguém buscou pesquisar as ligações entre as concessionárias de rodovias e as empresas que prometiam investir em novos terminais portuários? Alguém perguntou algo a respeito dos pátios reguladores, onde os caminhões estacionariam até ser descarregados, sem necessidade de congestionar a estrada? Em pelo menos um caso, houve uma empresa que criou um terminal portuário próprio antes mesmo que a MP que o legalizaria fosse proposta. Bola de cristal, talvez? Ou uma boa análise de mercado, mostrando que um dia isso iria acontecer, e não poderia demorar, já que teremos a Copa e as Olimpíadas?
O fato é que os grandes interesses envolvidos no caso não foram identificados. O consumidor de informação teve de passar sem isso. Entrevistas com empresários interessados na manutenção dos regulamentos atuais, ou mobilizados para a aprovação da MP, ou no meio do caminho, querendo mudar o que existe hoje mas sem chegar ao ponto proposto pelo Governo, isso simplesmente não aconteceu. Aliás, no dia em que a Câmara discutia a MP, o repórter de um grande jornal, envolvido desde o início na cobertura do caso, procurava informações sobre quem controlava cada uma das empresas. Até então, essa informação não tinha sido levada em conta pelos meios de comunicação.
Agora a MP foi aprovada e haverá mudanças na operação dos portos brasileiros. Estarão os veículos dispostos a acompanhar o que acontece para nos contar como é que as coisas vão funcionar de verdade?
Fogo frio
E, por falar em não falar dos acontecimentos, o galpão onde estava armazenado todo o acervo de 40 anos do Balê Stagium, em Parelheiros, SP, pegou fogo (os indícios são de incêndio proposital). Ali havia cenários, figurinos, adereços de uma das mais importantes companhias de dança do país, comandada por gente talentosa, trabalhadora e competente como Márika Gidali e Ademar Guerra.
O incêndio aconteceu no início da madrugada do dia 16, foi feito Boletim de Ocorrência, tomaram-se todas as providências legais. Mais de 24 horas depois, saíram os jornais do dia 17. Cadê a notícia? Nem uma linha. TV, rádio? Nada. Saíram algumas fotos no Facebook, postadas por admiradores do Stagium, por aficcionados da arte, não por jornalistas no exercício da profissão. Como ninguém ficou ferido, nem morreu, a notícia foi totalmente ignorada. Afinal de contas, sumiu apenas uma parte da história cultural do Brasil - uma partezinha, os últimos 40 anos. E quem é, nos meios de comunicação, que está hoje preocupado com herança cultural?
A praga da não notícia
Leitor desta coluna, o jornalista Pedro Paulo Taucce, estudioso de Linguagem Jornalística, há anos se preocupa com aquilo que chama de Jornalismo do Futuro do Pretérito: "teria feito, teria assassinado, teria dito". Comenta:
"Esse tipo de construção virou praga no jornalismo brasileiro. É o jornalismo da dúvida, não do fato. E jamais ouvi dizer que o jornalismo vivesse de dúvidas. Nos dias atuais, ninguém faz mais nada: não mata, não fala, não declara, não rouba - enfim, não faz, teria feito.
"Creio que, certo dia, alguém, numa determinada redação (acredito que de um grande órgão de imprensa), ficou com medo de afirmar algo, e usou e abusou do futuro do pretérito para repórter (?) alguma matéria. Aí, um estagiário achou bonito e passou a usar. E a praga se alastrou com mais força na linguagem jornalística do que os famosos gerúndios assassinos. Hoje, virou um costume".
Taucce tem sólida formação acadêmica: graduado pela Universidade Federal de Juiz de Fora, MG, pós-bacharelado na University of Florida, EUA, autor de um projeto para pós-graduação em Língua Portuguesa versando sobre o jornalismo da dúvida. Defendeu uma dissertação, Mudança de Linguagem no Jornalismo: o uso e o abuso do tempo verbal Futuro do Pretérito pela imprensa.
E que aconteceu com esse trabalho? Descansa tranquilamente nas prateleiras da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, à disposição de quem se interessar. "É uma prova de que alguém se insurgiu contra esse absurdo de transformar fatos em dubiedades". Alô, editoras! Que tal publicar essa tese e mostrar para os estudantes de Comunicação que o jornalismo vive de fatos, não de suposições?
A propósito, lembra Taucce, outra praga é o "suposto". O sujeito não é mais acusado de alguma coisa, ele é "suposto isso e aquilo". Será que quem usa esse tipo de linguagem não se deu nunca ao trabalho de consultar um bom dicionário para ver o real significado da palavra "suposto"?
A praga, em exemplos
1 - Um carro de Fórmula 1 bate em altíssima velocidade e não se estraçalha. Um carro esportivo de passeio com a mesma tecnologia, uma Ferrari novinha, ficou estraçalhada num acidente em São Paulo. Diz o título: Carro estaria em alta velocidade e bateu em um poste.
Já o texto diz que o carro teria batido num poste. Se o repórter tivesse olhado para o poste, saberia se houve ou não a batida. Mas olhar? Ir até o local, em vez de pegar informações por telefone? Cansa! A propósito, havia na Ferrari um homem e uma mulher, que segundo a notícia eram os supostos ocupantes.
2 - Um cavalheiro pulou da janela do 20º andar, no Rio. Em seu apartamento, encontraram o corpo de sua esposa. Tinha sido morta a facadas. Uma carta deixada pelo marido no apartamento informava os motivos do assassínio e do suicídio. Título: Polícia investiga suposto assassinato seguido de suicídio em prédio do Rio
3 - Na mesma notícia, informa-se que, segundo a Polícia, o suicida seria primo de uma importante personalidade federal. Será que até a Polícia está com preguiça de verificar uma informação tão simples de confirmar ou desmentir?
4 - Este texto bate um recorde: além de ser tudo suposto, é confessadamente inventado. Dizem as revistas de fofocas que a atriz Katie Holmes voltaria com Tom Cruise por causa da filha de ambos, Suri. Base da informação, transcrita nos mais diversos meios de comunicação: uma psicóloga (que não trata de Suri nem a conhece) disse que, se a criança não consegue superar o trauma da separação dos pais, a mãe costuma dar prioridade à filha e acaba reatando com o ex.
De volta à não informação
Voltemos à Ferrari acidentada em São Paulo. Diz um título exemplar: