Coluna - Observatório da Imprensa
O famoso slogan do The New York Times virou sinônimo de uma boa escola de jornalismo: All the news thats fit to print, Todas as notícias que devem ser publicadas. A maioria absoluta dos os grandes jornais do mundo gostaria de estampar esse lema; a maioria absoluta dos grandes jornais brasileiros se orgulha de segui-lo (e, com eles, todos os principais meios de comunicação). Só que não. Não funciona assim, não.
Há autoridades justiceiras interessadas em punir determinadas pessoas ou empresas; e, convencidas de que nada conseguirão nos tribunais, procuram desmoralizá-las previamente, de maneira a castigá-las fora das penas previstas por lei, causando prejuízos a seu nome e sua reputação, mesmo que sejam absolvidas. Outras autoridades têm como objetivo pressionar a Justiça, para que os juízes se sintam constrangidos sempre que tiverem de recusar seus pedidos de prisão de suspeitos ou de monitoramento de telefones. Há exemplos abundantes, que incluem documentos redigidos por advogados de uma das partes e transcritos e assinados por promotores, que os repassam a repórteres, digamos, amigos, amigos fiéis; e vazamentos seletivos. Do inquérito sigiloso aparecem alguns nomes e fatos, entregues a jornalistas de confiança das autoridades. Os jornalistas confiam, em vez de cumprir sua missão de desconfiar.
A isso se chama "documentos a que o jornal teve acesso". Muitos jornalistas adoram o esquema, que lhes garante uma boa posição no veículo, abundância de matérias assinadas, amplo destaque, sem muito trabalho. Isto acaba de acontecer mais uma vez, tanto que o Ministério Público suíço, tendo descoberto que documentos sigilosos enviados às autoridades brasileiras estavam sendo entregues aos meios de comunicação - o que é ilegal tanto lá como aqui, só que lá se leva a lei a sério - decidiu suspender sua colaboração com o Brasil.
Já é suficientemente ruim; mas tem um lado ainda pior. Se alguns nomes e fatos são vazados, os demais são protegidos. A verdade pela metade equivale à mentira pela metade. Os suspeitos são divididos em duas grandes categorias, os que não têm direito nenhum e vão pagar o pato e os que continuam tendo o direito a exercitar seus direitos e vão escapar numa boa, haja o que houver. A Operação Lava-Jato, da Polícia Federal, é um bom exemplo: empresas citadas nos papéis de um ex-diretor da Petrobras tiveram seu nome vazado para a reportagem, que "teve acesso aos documentos" do caso. Já outros casos, mesmo agora conhecidos, estão encobertos pelo manto não tão diáfano do corporativismo dos meios de comunicação.
A notícia existe, tanto quanto as outras; mas a tinta em que deveria estar escrita se evaporou, a luz se acabou, a Internet falhou, a TV pifou. E agora? Agora, nada. Agora, como de hábito, nada.
Os fatos como eles são
Em depoimento na CPI do Senado, o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, falando sobre sua empresa Costa Global, suspeita de atividades ilegais, suspeita de atuar apenas como fachada para encobrir a circulação de dinheiro de propinas, disse que um de seus clientes é uma poderosa rede de comunicação, altamente influente. Essa rede, segundo Costa, contratou sua empresa para vender uma ilha no litoral fluminense.
Bomba! Bomba! Bomba! Parem as máquinas, diria o repórter de algum filme antigo. Ou nada disso, já que essas coisas só aconteciam mesmo em filme antigo. A notícia foi tranquilamente esquecida pelos grandes meios de comunicação. Só saiu em publicações engajadas, que há muito tempo movem campanha contra a imprensa em geral e a referida organização em particular. Muita gente acabou acreditando que, por ser divulgada apenas em publicações engajadas, talvez fosse uma notícia planejada, ou distorcida, plantada com o objetivo único de prejudicar a organização atingida.
E não é nada disso: houve uma declaração formal, diante de parlamentares reunidos em CPI, feita pela mesma pessoa cujos documentos, devidamente vazados, motivaram pesadas campanhas contra outras empresas de outros ramos de atividade. Sua palavra, imaginemos, tem o mesmo valor quando pronunciada ou quando anotada. E, no caso, não é uma questão apenas de palavra: Paulo Roberto Costa diz ter em mãos o contrato assinado com o grande grupo de comunicação. Um repórter não terá grande dificuldade em "ter acesso ao documento", levá-lo ao grupo apontado como contratante dos serviços da Costa Global, e fazer uma grande matéria - que, entre outras coisas, responderá a uma questão central do caso, se a Costa Global atua efetivamente ou é uma empresa de fachada.
Por que essa diferença de tratamento?
Excelente pergunta. Quando, em 1897, o The New York Times adotou o lema All the news thats fit to print, outro slogan havia sido proposto: A decent newspaper for decent people. O fato é que ambas as frases são complementares: um jornal só pode escolher as notícias que devem ser publicadas, só terá autoridade moral para isso, se for um jornal decente para pessoas decentes. Esconder uma notícia importante não é coisa de veículos decentes e certamente vai contra a hombridade de jornalistas decentes.
O público decente só não se irrita porque a notícia lhe foi sonegada e dela não pôde tomar conhecimento.
Vazamentos e agressividade
É interessante analisar o comportamento da imprensa diante de vítimas de vazamentos (e não se discute se essas vítimas são ou não culpadas: a investigação deve ir até o fim, quem for denunciado deve ser julgado, mas quem decide se há culpa são os tribunais, que também devem decidir as penas a aplicar). De repente, a linguagem do jornalismo é substituída pelo jargão policial. Já não há "perguntas", e sim "questionamento" (daqui a pouco, em vez de pedir entrevistas, vai haver gente querendo "fazer uma oitiva"). Há certas técnicas de uso repetido: por exemplo, no caso de acusações a empresas, para fugir à norma de publicar "o outro lado" (normalmente um resumo malfeito das razões de quem está sob fogo), usa-se muito o telefonema fora de horário. A reportagem é preparada e fica na gaveta. Depois das 18h30, quando normalmente as empresas já encerraram o expediente, o repórter telefona. E tem a possibilidade de publicar algo como "não foi possível encontrar ninguém da empresa para expor sua posição", ou "o Sr. Fulano de Tal alegou ser segurança e não ter condições de procurar nenhum diretor da empresa para atender à reportagem".
Às vezes a técnica é mais requintada: uma empresa é procurada à noite, na véspera de um feriado, com um longo "questionamento" que envolve informações que só podem ser encontradas na documentação sobre o caso. Mas o prazo de fechamento se encerra na tarde do feriado. Como buscar os documentos e, dentro deles, encontrar as informações solicitadas no interrogatório, num feriado? Pois é.
Mas a informação divulgada pela fonte, sem pedido de reserva, desde que envolva um complexo de empresas da área de comunicação, esta não é relevante. Quem sabe, algum dia, se alguém escrever uma tese universitária ou um livro a esse respeito, a informação seja enfim divulgada?
Vossa majestada
Rios de tinta, grande quantidade de energia elétrica, milhões de bytes de banda larga foram gastos diante dos insultos dirigidos, no jogo de abertura da Copa, no estádio do Corinthians, à presidente Dilma Rousseff.
Colunistas aliados e adversários do Governo se apressaram a condenar os insultos; houve quem quisesse culpar pelos insultos "a classe média branca e paulistana" - que, naturalmente, foi a Ribeirão Preto, a centenas de quilômetros de São Paulo, assistir a um show do Rappa onde o mesmo slogan foi gritado, e, claro, viajou a Belo Horizonte para ocupar o Mineirão e repetir exatamente o mesmo insulto.
Desperdício de tempo, desperdício de espaço. Em primeiro lugar, não é correto insultar uma pessoa - mulher ou homem, tanto faz. A velha vaia, embora rime com a nova - "uhuuuuuuu" - é mais educada, expressa os mesmos sentimentos com mais civilidade. Segundo, um estádio de futebol não é exatamente um convento de freiras que fizeram o voto de silêncio. Como dizia Nelson Rodrigues - que hoje, veja só, se tornou o autor preferido das esquerdas, que o odiavam mortalmente não faz tanto tempo assim - em estádio se vaia até minuto de silêncio. Presidentes populares foram vaiados. Lula, no auge da popularidade, esteve no Maracanã em 13 de julho de 2007 e sofreu uma vaia monumental. Por que com Dilma seria diferente?
Ah, dirão, mas ninguém berrou palavrões para insultar o presidente Lula. E, se berrassem, Lula não daria a isso a menor importância. Ele mesmo, durante a Caravana da Cidadania, comentando o Governo de Itamar Franco, disse ao repórter Fernando Molica, da Folha de S.Paulo, algo como Esse filho da puta do Itamar está perdendo a oportunidade de mudar o Brasil Estaria Lula insultando o presidente? Não, não estava: estava apenas demonstrando, em linguagem popular, chula mas não ofensiva, seu desagrado com o desempenho de Itamar.
Ora, insistirão, mas Dilma é mulher, é mãe, é avó. O argumento é fraquíssimo, sexista, retrógrado. É o mesmo que querer saber se Dilma, por ser mulher, sabia cozinhar (e fizeram isso também, quando foi candidata pela primeira vez). Não se deve insultar Dilma por ser uma pessoa, um ser humano. Não deve ser poupada por ser mulher, mãe, avó; um dia, vamos torcer por isso, bisavó.
Não há intenção de "lesa majestada", da mesma forma que Lula não teve a intenção de cometer o crime de "lesa majestade" ao referir-se daquela maneira ao presidente Itamar.
Muitos pesos
Em toda a cobertura monumental da manifestação contra Dilma, não encontrei algumas perguntas fundamentais:
1 - Quando o governador paulista Mário Covas foi insultado e agredido fisicamente na Praça da República, em São Paulo, José Dirceu disse que os tucanos deviam apanhar nas ruas e nas urnas. A pergunta: o pessoal que ficou indignado com o lema tão comum nos estádios protestou contra a agressão ao governador? Reclamou do apoio de Dirceu aos agressores? Terá este colunista ficado tão surdo que não ouviu a dura reprimenda de Dilma Rousseff aos mal-educados violentos?
2 - Quando a jornalista cubana Yoani Sanchez visitou o Brasil, houve manifestações com o objetivo de, além de insultá-la, impedi-la de falar às pessoas que queriam ouvi-la. Yoani, como Dilma, é mulher; e estava no Brasil como visita, a convite. O pessoal que ficou indignado com o lema tão comum nos estádios protestou contra os insultos a Yoani e os tumultos que chegaram a impedi-la de falar em alguns lugares? Teremos todos ficado tão surdos que não ouvimos as duras reprimendas de Dilma Rousseff aos mal-educados violentos?
3 - Quando um militante petista, Rodrigo Pilha, funcionário da deputada distrital petista Erika Kokay, de Brasília, reuniu um grupo de amigos mal-educados para insultar e perseguir na rua o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, ele mesmo se vangloriou do feito, com frases como "nós o botamos para correr". O pessoal que ficou indignado com o lema tão comum nos estádios protestou contra a perseguição e os insultos ao presidente de um dos três Poderes da República? Teremos todos ficado tão surdos que não ouvimos as duras reprimendas de Dilma Rousseff aos mal-educados violentos?
Só os adversários são obrigados a se comportar de maneira educada?
O Serra, da UNE a 2014
José Serra, ainda com cabelos, era um dos mais radicais partidários das "reformas na lei ou na marra", nos tempos do Governo Goulart. No Comício das Reformas, em 13 de março, no Rio, estava no palanque ao lado do presidente Jango, de Leonel Brizola, do líder comunista Luiz Carlos Prestes. Teve de exilar-se, morou no Chile, de onde teve de fugir após a deposição de Salvador Allende, voltou ao Brasil, entrou no PMDB, fez parte do Governo Montoro, em São Paulo, foi um dos fundadores do PSDB, foi governador e prefeito, e por duas vezes tentou, sem êxito, a Presidência da República.
Serra conta a história do meio século do 31 de Março de 1964 até hoje em 50 anos esta noite - o golpe, a ditadura, o exílio, que lança na próxima terça-feira, dia 24, às 19 h, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, SP. Um livro essencial para entender a história contemporânea do Brasil.
Como...
De um grande portal noticioso de Internet: